NO TEMPO DAS MAL TRAÇADAS
—Sapabela!
—Rospo! O domingo já
está anoitecendo! O que é isso em sua mão?
—Hoje estive a
lembrar do tempo das mal traçadas.
—Da carta. Como eu
ficava feliz quando recebia uma carta! Até hoje conservo a minha
caixa postal.
—Pode dizê-la para
mim?
—Claro! Caixa Postal
53125; cep 08201-970; Sampa/SP
—Sente saudades do
tempo das “mal traçadas linhas”? Mas hoje recebe uma quantidade
expressiva de e-mails diariamente... E dizia que jamais iria
abandonar a máquina elétrica...
—Alguns abandonos são
apenas materiais...
—Entendi isso não...
—Não seja modesta,
amiga. Eu quis dizer que jamais abandonei a máquina elétrica assim
como jamais abandonarei a carta...
—Mas confessa que é
melhor digitar diante da tela e saber que alguém em Portugal irá
receber no mesmo instante a sua mensagem...
—Sim, isso é
indiscutível... O que pode ser discutível, numa seresta, numa
calçada enluarada, numa bebida gelada seria a suposta quebra da
emoção...
—Tem certeza do que
diz?...
—Ocorre que algo está
acontecendo, Sapabela.
—Diga, meu querido.
—O espírito do sapo,
a sua alma, a sua mente, tem um poder extraordinário de adaptação,
de adequação... O Ser se reinventa a cada dia, transforma a sua
própria forma de sentir para continuar sentido as mesmas emoções...
—Estou quase chegando
lá, fale um pouquinho mais.
—O espírito do Ser
luta de forma obstinada e persistente para recuperar o terreno
perdido...E vai metabolizando as suas transformações no campo dos
sentimentos, a metamorfose é sempre um renascimento, um gesto de
fênix, uma revitalização de si, uma renovação... E vai e
ressurge...
—Ainda precisa falar
um pouquinho...
—Veja: ele perdeu a
emoção da carta, todavia incansavelmente busca recuperá-la e essa
emoção, essa aventura de ser, ressurge no e-mail, diante da tela.
Ele volta a se emocionar com as palavras de amor como se estivesse
diante do papel da carta. Não está e sabe que não é mesma coisa,
mas seu coração pulsa na mesma intensidade diante de uma declaração
de amor como outrora... Essa é a sua incrível capacidade de
adaptação, pois para ele o que importa é poder amar e se
expressar...
—Pelo que está
dizendo, o livro de papel seria então substituído pelo livro na
tela...
—Não exatamente...
Da mesma forma que a carta jamais será substituída, o livro de
papel continuará absoluto em sua alma de leitor...
—Como é isso então,
Rospo?
—Lá no recanto
primordial, no abismo dos abismos, lá no fundo de sua alma... a
carta permanece...
—Mas o sapo não
recusa o e-mail, por causa da praticidade...
—Sim, e sofre
naturalmente o processo de adaptação necessário à sobrevivência
do sentir.
—E o livro?
—O sapo de nossa
geração ainda não sentiu a praticidade no livro na tela da mesma
forma que ocorreu com a carta... Que, embora insubstituível, está
sendo trocada pelo e-mail, é apenas uma cumplicidade, uma espécie
de acordo... Entretanto, abrir um livro de papel seja no Metrô ou
no banco de uma praça ainda é um gesto de felicidade
insubstituível...
—Então, tudo é uma
questão de felicidade...
—Sapabela, que teia
está tecendo? Sim, é isso...
—Então, o e-mail é
uma forma de felicidade que pode muito bem substituir a carta?
—Não o e-mail, que
aliás, transformou a escrita, a forma de comunicação. Ainda guardo
comigo algumas cartas longas, mas no e-mail ninguém escreve mais
“longas cartas”...
—Se não é o e-mail,
onde está então o eixo, o centro, que poderíamos chamar de
felicidade?
—Está na sapa que
escreve, ou no sapo... Na sapa que escreve e na sapa que lê... Está
dentro de cada um...Essa é a felicidade... Por isso o sapo se
adaptou... E aceita a tecnologia para transmitir os seus
sentimentos...
—Mas às vezes um
sapo pode terminar o namoro pelo e-mail...
—Até por uma
mensagem de celular...
—Então, nesse
aspecto, a tecnologia não é eficaz... quer dizer, ela secou os
sentimentos, embruteceu-os... A tecnologia transformou a forma de
sentir...
—Não creio que
estejamos falando de tecnologia, Sapabela...
—Não?
—Não. Estamos falando de sapos e sapas...
—Não. Estamos falando de sapos e sapas...
—Entendi, sapo pode
escrever com canivete num caule de árvore, com carvão num muro, ou
então num e-mail... Mas o que importa nessa história é que ele
busca as formas de expressar o seu amor... Seja com muitas ou poucas
palavras... Em mensagens breves também pode se declarar amores
longos e imensos...
—Sim, as suas
paixões, as suas tempestuosas paixões, e o seus amores, seus amores
autênticos, sinceros... e são esses sentimentos que movem o
mundo... Ainda é um espetacular mistério um sapo e uma sapa se
amarem...
—Rospo, sobre o livro
de papel, eu estou com você...
—Sapabela, mas hoje
você está um labirinto... Que tal glorificarmos o domingo?
—Viva! Adoro! Aceito!
—Já sei, aceita um licor de anis...
—Viva! Adoro! Aceito!
—Já sei, aceita um licor de anis...
—Yap! Quer que eu
diga? A padaria nos espera... Só não vai quem é bobo...
HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 831
Marciano Vasques
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