segunda-feira, 22 de março de 2010

HEMATOMAS DA ALMA

 HEMATOMAS DA ALMA      

É possível que você não suporte mais uma traição, mas a tenha que engolir em nome do cotidiano, da sobrevivência, de algum relacionamento; talvez algo em que se agarrar, esperança virando fumaça, se dissolvendo no ar, se esfarelando entre os dedos, astros morrendo numa insondável  noite. É possível que sofra calado, e perca a pureza anterior, que olhe os amigos com desconfiança, e encontre, ao descer os degraus, rastejando - se em agonia, a sua fé no espírito humano. 

É possível que siga em frente porque afinal é a única alternativa, e talvez aprenda a trair, a compreender o jogo, e se veja de repente no meio de uma arena, numa disputa, num campeonato cujo troféu é a sua derrota.

         Talvez tente preservar as últimas gotas do seu ser, proteger a sua essência das armadilhas da rotina traiçoeira, erguer uma ponte de concreto sobre o brejo da inveja, ser autêntico acima de todos os custos, manter-se fiel ao seu inegociável desejo, ao seu invendável querer, mas em seu coração as sequelas são incicatrizáveis, e acima de tudo, o que lhe remói por dentro são os hematomas da alma, machucados, palavras que o enganaram, falsos sorrisos, coisas pelas quais nunca esteve preparado.
         Pode ser que nem haja uma só testemunha do seu gemido, e a sonoridade do seu grito se desfaça no véu do esquecimento.
         E no salão das vaidades, você passe como um vulto que não ousa se abandonar, que não ousa suportar a pequenez dos relacionamentos infrutíferos.
         Tudo é possível, até mesmo resistir, e o enfrentamento na imensa batalha clame por uma força sobre - humana, pois sempre é mais fácil ceder, sempre.
         Mas você é grande, e oferece o rosto ao vento, enfrenta o dia, ouve as piadas, observa o que se perde, o que se calou.
         As decisões revelam a todo instante a força do seu caráter, do seu coração. Desde as mais simples, embora difíceis na sua simplicidade, como decidir entre comer um alimento rico em fibras ou um doce qualquer. 
Não é fácil, nunca foi, mas sempre valerá a pena varrer os porões da mente, limpá-los, enxaguar com o pranto da sinceridade, olhar para frente, e ver que o caminho é inesgotável,  e ficará algo de você, pelo menos nas  folhas verdes que tocou, mesmo que apenas com o olhar, compartilhando o tempo, passando heroicamente como tudo passará, tudo e todos. 
Algo que permanecerá enquanto existir uma só memória, não morrerá completamente, porque afinal morrer é acabar.
         Ficará, da mesma forma como não é possível um curativo, algo que possa solucionar os hematomas da alma.





MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - TEXTO 5

2 comentários:

  1. Caro Marciano, belo texto, cru, real, mas com um gosto meio amargo... por muitos anos tive dores incicatrizáveis, como vc disse, mas como vc diz também tudo passa... e o mundo e o tempo conspiram, A FAVOR... bjs

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  2. Fernanda Matos,
    Obrigado pelo comentário.
    Gosto dos versos "O Tempo não para no porto, não apita na curva, não espera ninguém".
    Sim, HEMATOMAS DA ALMA tem mesmo um gosto meio amargo, como você diz, talvez em certas passagens, até amargo como boldo, mas, quem sabe, em outras passagens, esteja como chocolate amargo. A alma é maltratada na rotina das coisas que são no cotidiano, das coisas que se perdem, se dissolvem, se esfarelam, e seus hematomas deixam cicatrizes, porém, a vida se renova, a cada instante, e seguimos em frente, como arbustos, musgos, furando o concreto da calçada, como flor teimosa que viceja sem jardim.
    Abraços, um beijo,
    Marciano Vasques

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