segunda-feira, 22 de março de 2010

O CAVALO NÃO DANÇA TANGO


  

O CAVALO NÃO DANÇA TANGO


 
 

Peguei o pedacinho de gente da nossa família e lá fomos. Eu, ela e a vovó.
O circo começava às nove horas da noite. Antes do espetáculo olhamos os camelos e os cavalos malhados, cada um em seu quadrado cercado, com o chão forrado de ração, que não era ração, era feno, que não era feno, era serragem. Um dos cavalos comia seus próprios excrementos. Foi difícil falar sobre isso com ela, tão pequena ainda.

Entramos.
Eu, ela e a vovó em frente ao picadeiro, bem ao centro. O circo não estava lotado, mesmo com a promoção: De terça à sexta, cinco reais. Adultos e crianças.
Acompanhei o seu olhar desde o início. Certamente não estava entendendo nada. Com três anos de idade é difícil se compreender argolas de fogo,  mulheres  voando sob a lona iluminada por focos de luzes, e índios cortando papel com o chicote.
Não entendia, mas o encantamento era visível. O que se passava em sua cabecinha nunca saberemos com exatidão, mas que aquilo ficaria alojado para sempre em algum lugar na sua memória, sabíamos.

 No meio das atrações, eis que no picadeiro um punhado de animais surge: avestruzes, lhamas, emas, jumentos...Os bichos dão voltas no palco e saem. No centro de tudo, um homem com um longo e fino chicote estendido, no ar circulando.
Depois a atração dos tigres asiáticos, dos filhotes de tigres da África, dos camelos.
Não deu pra entender bem a atração dos camelos, pareceu apenas uma exibição dos animais, uma exposição, uma nova forma de zoológico.
Depois os dois palhaços com diálogos e brincadeiras que interessam para crianças maiores. A que estava comigo e a vovó não entendia, por exemplo, uma brincadeira com as camisas de times de futebol, ela nada sabia disso ainda. Mas palhaços encantam os pequenos.
Os trapezistas, os malabaristas, tudo é um grande espetáculo para os seus olhos.


Chega finalmente a atração principal para ela. Os cavalos. Primeiro os malhados, que não fazem nada, ficam apenas dando voltas no picadeiro, pura exibição, mas são os cavalos, e é isso que importa. Ela é louca por cavalos, principalmente depois que assistiu ao "Spirit: o corcel indomável".
 
Após umas  dez voltas eles saem do palco.

 Finalmente o grande momento! O cavalo preto surge no picadeiro, montado por um jovem que segura uma vara.   
  Dá várias voltas. Depois se abaixa, pedindo aplausos, igual havia feito o macaco que andou de bicicleta. Ajoelha-se, ergue as duas patas e para alegria da platéia dança um tango. A arquibancada delira.
A música no ar e o animal dançando.
O cavaleiro falando baixo algumas palavras, e dando uns toques com a bota no corpo do animal.
A coreografia do cavalo é absoluta. Ele acompanha o ritmo com uma agilidade que encanta as crianças.
O cavaleiro bate levemente com a vareta numa parte do corpo do bicho e ele se movimenta, bate noutra parte e ele executa outro tipo de movimento. Sempre ao ritmo da música.
Ao final todos aplaudem. Nós também, para ela aprender. 
O cavalo se ajoelha novamente agradecendo os aplausos. Depois ergue as patas dianteiras, dá algumas voltas e finalmente sai do picadeiro. As luzes se apagam novamente para a troca de atração.

Num dos momentos da apresentação, a vovó me lança um olhar emudecido, quase orvalhado, de uma tristeza infinita. Não há uma palavra sequer para esse olhar, nem precisa. Enquanto no picadeiro o cavalo dançava aos toques da vareta do cavaleiro, a vovó me mostrava que uma criança é para sempre, mas se modifica com o tempo. A que há na vovó mudou.
O espetáculo terminou. Fomos rapidamente para o ponto do ônibus. Olho para trás, para o circo.
Os passos apressados para não perder o ônibus.
Ela, de cavalinho.



MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - TEXTO 4

2 comentários:

  1. CAro Marciano,
    estou especialmente emociaonada hj, e foi muito legal ler seu conto sobre cavalos. Amo os cavalos, mas ainda me depara com contradições entre o filme spirit, um cavalo que é livre e se faz livre, e eu que monto em cavalos e os faço pular obstaculos, porque eu gost também,,, e eles? Meu sonho é morar numa vila hípica, com pessoas livres e com cavalos e cães livres... será que realizo aqui na terra? que os deuses me mostrem o caminho, até, e parabéns...
    esse é o desabafo da minha criança que insiste em acreditar que sou livre!

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  2. Relato muy tierno, me ha gustado. Los recuerdos infantiles siempre nos acompañan, y más si tienen que ver con el circo. En el fondo, como tú dices, nunca dejamos de ser niños... Adorable relato.
    Un abrazo.

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