quarta-feira, 10 de março de 2010

ORFEU


  ORFEU
 
Para o velho Eagro, o temido e admirado rei da Trácia, amante da guerra, homem das armas, a música é barulho e a educação do filho caçula, um fracasso.
Esse é o seu desgosto: não conseguira educar Orfeu para a guerra.
A sua belicosa pedagogia não conseguira sensibilizar para a guerra o jovem com alma de artista.
Eagro sofre. É um rei, tem poder, mas perdera o próprio filho.
Quando o chama, tem entre os dedos a última e desesperada tentativa de cativar o neto de Ares, deus da guerra, para o mundo do guerreiro. O filho o acompanha à sala. Na parede: elmos, armaduras e armas.
"Quero que receba de seu velho pai este presente. Nele está depositado o meu coração" diz ao jovem. Quando Orfeu abre a caixa vê diante de si um arco e um par de flechas, banhados a ouro.
Ao retesar a corda, Orfeu produz um som encantador e repentinamente as coisas da sala parecem adquirir vida.
Cadeiras balançam, armas caem da parede. Tudo parece se movimentar. O som flutua no palácio, sensibilizando os empregados.
Eagro fica furioso. Seus olhos sangram, na voz palavras terríveis lançadas ao ar como chamas: - Vá embora! Desapareça! Não o quero mais aqui! Eu não o queria assim, um ... um cantador... um artista...um...um..." - mal consegue pronunciar as palavras: - "Você decepcionou seu pai". Eu o queria um guerreiro, um bravo, um amante das guerras, por isso vá embora!"
Expulsa o próprio filho da sua casa, do seu reino.
Ninguém pode penetrar na dor de Eagro, nem compreender a alma da música que invadiu o coração de Orfeu.
Orfeu olha para Eagro, pensa em Calíope, sua mãe. Em seu pensamento dançam as lembranças das aventuras vividas na velha Trácia. Olha para o monte Olimpo, pois habitava perto dele. Mas é o fim. A sua música não seduziu o velho pai.
Orfeu corre sem parar. Penetra cada vez mais na floresta. Verdes bailam em sua passagem, a ventania se esquiva, a floresta emudece, pássaros silenciam. A cacatua, a cotovia...
Ao chegar na clareira da floresta, caiu ao chão e adormeceu. O cansaço o venceu. Quando desperta constrói para si um instrumento musical, uma cítara. Coloca nove cordas no instrumento.
Seu enverdecido pensamento pensa que a música será a sua única companheira e então, ao tocar, inventa o antídoto do mal. Tem a imensa convicção de que a música espanta os males.
Ninguém o seguirá, será o cantador solitário das florestas. Aonde ele for, a sua música estará com ele. "Sou Orfeu"! quer gritar, mas seu pensamento é transformado em terna melodia.
Verdes o reverenciam, caules e flores abrem passagem para a sua música. Mas, ele se enganara, não segue solitário.
Por onde passa, encontra amigos, todos o seguem para ouvi-lo, querem apreciar a sua música, que se mostra curativa da alma. A cada acorde seduz a natureza.
Pássaros aperfeiçoam seus cantos com Orfeu, pardais, gralhas, rouxinóis, cotovias, melros. Ele entrelaça o seu canto com o dos pássaros.
Animais esquecem a rivalidade natural e, com a natureza subvertida, passam a conviver em harmonia. Raposas, texugos, veados, leões, corças, javalis.
Até os insetos o seguiam atraídos pela mágica sonora. Tomados pelo encantamento, borboletas, libélulas e gafanhotos o seguem.
As flores adquirem novas cores, os girassóis se iluminam, verdes e azuis se renovam. A sua música opera milagres indescritíveis.
Certa vez, quando a floresta entardecia, Orfeu teve o pressentimento de que estava sendo observado.
Sentiu olhos pelas frestas, e ficou apreensivo.Estaria sendo seguido? Teria invadido território sagrado? Teria ofendido aos deuses? Para espantar os males, decidiu cantar e seu canto revelou entre as folhagens a bela criatura que o espreitava.
Surgiu diante dele, dançando, uma ninfa de cabelos longos e possuidores da cor da floresta. Ele, atônito, ficou paralisado diante da ninfa. Ela começou a falar. A voz penetrou no coração de Orfeu.
"Eu sei quem você é" - disse a ninfa, que se mostrou conhecedora das proezas de Orfeu, que, transformadas em lendas, percorriam as florestas e varavam os povos.
"Já ouvi muitas histórias sobre você. Você derrotou o leão montanhês, o seu canto abriu o rio, as águas se ergueram, o rio se dividiu. As ondas foram detidas, e você abriu uma passagem entre as águas. Formaram-se duas paredes de água e você caminhou pelo corredor entre essas paredes. Você fez rochas dançarem, enfrentou e acalmou o dragão de três cabeças que guardava o Velocino de Ouro. Também salvou os argonautas da sedução do canto das sereias. Você, que é um sedutor..."
Realmente a ninfa sabia muita coisa sobre Orfeu. Conhecia as aventuras, sabia das lendárias histórias que se contavam sobre o cantador da floresta e enquanto falava essas coisas, deixava escapar que estava apaixonada pelo jovem.
"Qual o seu nome?" perguntou Orfeu, atordoado pela beleza da ninfa de cabelos florestais.
"Eurídice" respondeu.
"Sim, Eurídice. Agora eu sei quem é você. Você é a bela dançarina da floresta, e eu a quero a meu lado. Com você comigo sou mais forte, você com a sua dança aperfeiçoa o meu canto"
E ali, naquele enternecido momento, entre verdes, animais, pássaros e flores, se tornaram amantes.
Quis o destino que esse encontro trouxesse felicidade para a floresta, pois assim foi. Por onde passaram, a felicidade se espalhou. As frestas de sol invadiram as solidões da floresta, adeuses se afastaram, lamentos e dores, tragédias e tristezas, tudo desapareceu. Os prantos se dissolveram, as mágoas foram esquecidas, só alegria, amizade, ternura, felicidade...
Os povos da floresta, animados e agradecidos pelo bem que a música de Orfeu e a dança de Eurídice trouxeram, resolveram preparar uma bonita festa de casamento.
Todos participaram dessa preparação, animais e pessoas.
Os animais enfeitando as árvores, os homens construindo um altar e as mulheres tecendo um pano maravilhoso para o vestido de noiva de Eurídice.
Trabalharam dias seguidos na preparação desse significativo evento, a cada manhã, a cada entardecer e a cada noite, iluminados pelos candelabros naturais de milhares de vaga-lumes, e pela luz prateada da lua, que vagando no céu espreitava comovida a felicidade do casal.
O casal continuava espalhando a felicidade com a bela união.
Os habitantes da floresta ansiosamente aguardavam o grande dia, quando entre caules, galhos e rochas, percorreu a aterrorizante notícia de que terrível criatura se aproximava destruindo tudo, arrancando árvores, rochas despedaçando.
A assombrosa criatura, uma fera medonha, enorme, incapaz de ser detida por um exército de guerreiros, já dizimara aldeias, aniquilara famílias inteiras, e rasgara ao meio os mais fortes animais selvagens. Nada poderia detê-la. A única esperança, o canto de Orfeu.
Talvez, com a música, ele pudesse salvar da fatalidade, da desgraça e da tragédia os povos da floresta.
Os habitantes florestais imploraram para que ele fosse até a região montanhosa, onde estava a criatura medonha que se aproximava, para enfrentá-la.
Os anciões, reunidos em conselho, convenceram Orfeu a partir na véspera do seu casamento para enfrentar a criatura. "Só você, com seu canto, conseguirá deter a criatura". disse um pastor.
E assim ele se foi, deixando a visão esplendorosa da preparação do seu casamento. No caminho colheu uma flor lilás e entregou-a a Eurídice. "Fique em paz, eu retornarei. Guarde esta flor, ela simbolizará o meu canto até a minha volta".
Partiu em direção ao perigo, não podia se negar a salvar a vida de tão preciosos amigos e sabia, mais do que ninguém, que a sua música nascera para beneficiar a humanidade.
Tinha plena consciência que, se o seu canto não conseguisse acalmar a estranha criatura, tudo estaria perdido e, tantos os habitantes das florestas, quanto os animais e as árvores, estariam arrasados, tudo estaria destruído.
"Eu voltarei"! - disse para a sua dançarina, que, cortada pelas lágrimas do temor, abraçou forte o seu guerreiro do canto, e murmurando pediu proteção aos deuses, enquanto apertava o corpo ao de Orfeu, que emudecido num soluço, partiu para a arriscada missão.
Eurídice ficou sozinha com a sua flor lilás na morada da floresta, mas dias depois, despertada pela curiosidade natural das fêmeas, se dirigiu à clareira da floresta para ver como andava a preparação do seu casamento.
Acompanhada pelos pássaros e os olhos dos animais amigos entre as verdes frestas, a doce ninfa seguiu seu rumo, quando alguém a agarrou.
Pensando se tratar do amado que voltara, pronuncia o seu nome, mas logo descobre o engano fatal.
Está diante do guerreiro agricultor, filho de Apolo, que sempre fora apaixonado por ela, mas como  não conseguira conquistar o seu coração com o afeto e as armas naturais do amante, resolveu usar a força e covardemente a ataca.
Como nunca conseguira transmitir encanto para Eurídice, queria violar sua própria paixão.
- Solte-me Aristeu! Você não pode fazer isso! Ninguém manda no coração de uma mulher! Você sabe quem eu amo...
Uma força maligna subiu ao coração de Aristeu, o seu sangue transformou-se em chamas, dos seus olhos o ódio e o desprezo invadiram o ar.
Ele, o filho de um deus, um forte, ser derrotado por um músico, ter perdido o amor de Eurídice por um artista, é uma humilhação sem fim...
Furiosamente, dominado pelo ódio da perda, atirou Eurídice ao chão. Ela aproveitou e tentou se levantar e fugir, mas, mal dera alguns passos, foi picada por uma serpente.
O veneno e a dor imediatamente atingiram seu sangue. Contorcendo - se, caiu ao chão. Aristeu, tão covarde como chegara, foge, abandonando-a.
Quando o povo da floresta a encontrou, sua azulada alma já se dissolvia por entre as folhagens e se recompunha no ar, voando como que levada pelos ventos em direção ao mundo dos mortos.
Dois lenhadores a ergueram com cuidado e um deles, com a voz trêmula e encharcada pela dor, disse:
- "Não há nada a fazer! O veneno penetrou em seu coração. A sua alma já não está entre nós. Vamos levá-la para o altar".
E assim, quando o sol se recolhia entre as frestas das folhas, o povo da floresta entristecido, levava o corpo de Eurídice, enquanto a sua alma já se aproximava dos enormes portões do mundo dos mortos.
Entre os gravetos do caminho, uma flor lilás murchava...
Quando Orfeu retornou vitorioso após ter acalmado a horrenda criatura com o seu canto, numa feroz batalha entre a arte e a fera, e assim ter salvado os amigos da floresta, foi invadido por uma súbita felicidade ao avistar ao longe a multidão ao redor do altar.
Pensou se tratar da animação dos últimos preparativos do seu casamento. Sorriu.
Ao chegar perto do altar, ao ver a tristeza infinita nos animais e também nos olhos do povo da floresta, pressentiu que algo estava errado e cautelosamente se aproximou da multidão.
Ao deparar com o corpo de Eurídice estendido no altar e ver o seu rosto pálido como a cera, gelado, sem vida, caiu em prantos e abraçou desesperado o seu corpo.
Seu pranto varou a floresta, atravessou árvores, e transformado em melodia voou sobre lagos e rios. Levado por uma forte e repentina ventania subiu aos ares.
O mais dolorido dos choros, transformado na mais triste melodia, chegou ao monte Olimpo, a morada dos deuses.
Zeus, comovido pelo plangente tom da melodia, ordenou a Hermes, o mensageiro dos deuses, que descesse à terra e levasse Orfeu ao mundo dos mortos. Hermes chegou à floresta de Orfeu, e transmitiu ao músico a mensagem do deus dos deuses.
Zeus, convencido da força da melodia de Orfeu, acreditou que talvez ele pudesse enternecer o coração de Hades, o senhor dos infernos.
Ninguém jamais conseguira tocar o coração de Hades, mas Zeus, diante da dor de Orfeu, resolveu se arriscar. Se o músico conseguisse comover ou pelo menos sensibilizar o senhor dos infernos, ele permitiria que levasse a sua amada de volta para o mundo dos vivos.
Hermes acompanhou Orfeu até o barco de Caronte, o terrível barqueiro que transportava as almas para o mundo subterrâneo. Orfeu carregou consigo a lira, o presente de casamento que lhe daria o povo da floresta.
Ao chegarem, enormes portões foram abertos.
Demônios e almas medonhas guardavam a entrada daquele lugar assustador, mas Orfeu só tinha uma coisa no pensamento: reencontrar Eurídice e levar a sua alma de volta para o mundo dos vivos.
Entrou.
O poeta dos verdes inicia a sua descida aos infernos.
Então surge diante dele, a esplendorosa visão de Hades, ao lado da esposa e companheira Perséfone, a do triste destino.
Orfeu fica momentaneamente paralisado diante de tão rara e impressionante visão, pois nenhuma alma viva jamais vira Hades, porém logo em seguida começa a entoar a mais doce e profunda melodia que jamais então se ouvira.
E algo estranho aconteceu.
O coração de Hades foi atingido. O senhor do mundo dos mortos se comoveu. De seus olhos uma lágrima surge, imediatamente evaporada pelo calor daquele horrível lugar. Perséfone, a do triste destino, ouve em silêncio o esposo perguntar a Orfeu o que ele queria: - "Fale meu jovem, o que você quer de mim"?
- "Eu vim buscar a minha amada. Quero levar de volta a alma de Eurídice para o mundo dos vivos"! disse Orfeu com determinação.
"Eu consinto"! - disse Hades, enquanto fazia um gesto para um demônio, para que buscasse a alma de Eurídice.
- "Mas tem uma condição. Você não poderá em nenhum momento olhar para trás. Isso é um acordo. Se você olhar para trás, perderá para sempre a sua amada".
Orfeu concordou e começou a caminhar em direção ao mundo dos vivos. Do lado de fora dos portões, o barco esperava por ele.
Atormentada por demônios e almas prisioneiras, atrás vinha a sua Eurídice, gritando.
Também demônios o atormentavam, tentavam arrancar a sua lira e o chicoteavam. Mas Orfeu seguia corajosamente, sem hesitar, e quanto mais subia em direção aos grandes portões, mais se aproximava da certeza de que breve teria de volta em seus braços a doce dançarina.
Mas a sua vontade começou a fraquejar.
A dúvida começou a invadir o seu coração, a incerteza começou a abalar os seus passos. Estaria realmente sendo seguido por Eurídice? Aqueles gritos não seriam apenas alucinações? A dúvida instalada em seu coração o colocou diante do precipício do perigo de se romper um acordo, e despedaçado pela dúvida, olhou para trás.
No mesmo instante a alma de Eurídice se dissolveu. Em pó ao mundo dos mortos retornou.
Desesperado quis voltar, tentar segurar a sua amada que desaparecia para sempre no mundo subterrâneo.
Aos gritos, foi levado pelos demônios de volta para o mundo dos vivos e então se entregou ao abandono. Nunca mais quis saber do canto, entrou na mais triste solidão e se esqueceu, deitado, na mesma rocha da floresta onde um dia se sentou para construir a sua cítara, e lá ficou.
Orfeu, abandonado, não quis ouvir ninguém. O pastor do povo da floresta tentou reanimá-lo, mas não conseguiu. Disse o pastor: "Todos nós participamos da sua dor, mas só depende de você que a tristeza se transforme em canto", mas Orfeu nada respondeu, continuou no seu silêncio gelado de pedra, deitado na rocha, transformada em leito de morte.
O jovem amante cantor das florestas, decretou a eternidade do seu amor e a ele devotou seus últimos dias.
Folhas choraram orvalhadas diante da sua fragilidade.
Orfeu para sempre esperaria pela sua amada, na certeza de que a teria novamente nos braços e, a cada dia, foi perdendo o interesse por tudo.
O jovem que com o seu canto suavizava a dor, que desceu ao mundo das trevas, passou a viver para a eternidade do seu amor.
Um grupo de mulheres da Trácia, as bacantes, seguidoras da alegria, seguidoras do vinho, não suportavam a fidelidade de Orfeu para com a sua amada.
Como era muito difícil para elas suportarem a fidelidade do homem Orfeu, armadas com paus e pedras mutilaram o cantor das florestas.
Retalharam, trucidaram, despedaçaram atrozmente o jovem fiel.
Jogaram os pedaços ao rio, e junto, a lira, que Orfeu nunca mais tocara.
Seus restos, sua cabeça e a lira chegaram à ilha de Lesbos.
Os poéticos habitantes da ilha prestaram-lhe as homenagens fúnebres.
Edificaram um túmulo.
O músico, que não conhecia fronteiras entre a vida e a morte, descansou na ilha onde a poesia habitava.
Quando anoiteceu, o povo da floresta ao olhar para o céu, encontrou pela primeira vez a Constelação de Lira.

RECONTADO POR MARCIANO VASQUES
Originalmente em RioTotal

Um comentário:

  1. Bella Historia de Orfeo y Euridice:

    Impresionada por enorme sensibilidad de Orfeo.

    Gracias por trasmitir tanta Cultura. Montserrat

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