quinta-feira, 25 de março de 2010

 
Pã e Afrodite, espelho (British Museum, Londres)            



Corre o caçador pela mata. Verdes clamam pelo silêncio, mas ele persegue um animal. Sente-se no direito de tirar uma vida. Caça por prazer. Seu riso invade as folhas e ecoa pelas trilhas.

Repentinamente, ouve um som que o previne. Decide interromper a corrida. Desiste da caça. O som da flauta atravessando as frestas da mata o perturba. Já ouvira muitas histórias. O medo se intensifica. Resolve abandonar o lugar. Quando se dá conta está suando. Compreende finalmente o que significaria seguir em frente. Está em pânico.

Quem afirma que já o viu, conta que ele tem chifres, pernas e cascos de bode e adora a solidão. Está sempre tocando um conjunto de flautas de junco. É o protetor das florestas, garante. Para muitos é motivo de riso, mas ninguém ousa desafiar os mistérios das matas. O caçador que desistiu da caça e fugiu em pânico sabe que com deuses não se brinca, mesmo que ele jamais tenha ouvido ou visto algum.

Prefere nem contar, pois muitos dirão que as condições da floresta criaram as coisas na sua imaginação, as circunstâncias favorecem certos pensamentos e tudo não passou de um medo em sua mente.

- Mas e o som da flauta? - perguntaria.
- É o vento tocando entre as folhas, o movimento do vento entre os juncos produz um som característico. Nenhuma criatura estava no bosque tocando flauta.

Mas ele prefere não arriscar e aprendeu que às vezes é melhor acreditar.

- “A partir de hoje não caçarei mais sem necessidade!”

Eis um homem sábio, que compreendeu o aviso das matas.

Pã, nascido da união da filha de Driop com um deus mensageiro, veio ao mundo com uma forma esquisita. Sua mãe foge e o abandona no seu nascimento. Às vezes a aparência é fundamental para o estabelecimento do amor.

Seu pai o leva até o Olimpo e lá ele se torna motivo de diversão, inclusive para Dionísio, que tanto se alegra com a sua presença.

As ninfas sempre zombaram do seu rosto repulsivo e ele decidiu nunca se apaixonar.
Um dia, num entardecer esplendoroso ele encontrou a bela ninfa caçadora Siringe (Syrinx) e por ela se apaixonou. Tentou conquistá-la, mas foi rejeitado.
Pã e Siringe (Kunstsammlungen, Dresden)
- Você me rejeita por causa da minha aparência, mas a sua beleza talvez seja apenas exterior.

- Quem é você para falar assim comigo?

- Sim, como pode se julgar bela se é uma caçadora? Como pode ser bela se a sua diversão predileta é matar pobres animais indefesos?

- Preciso caçar diariamente...

- Para que?

- Para manter a minha destreza, para não perder a habilidade...

- Quantas vidas já tirou? Quanto sangue derramou sobre o verde pacífico das florestas? Quantos belos animais que viviam em paz em seu regaço tiveram que fugir por causa do seu arco assassino?
- Eu não admito que você fale assim, criatura horrível, o que você é afinal, um bode? Você é imperfeito, nem é animal nem gente... Que maldição caiu sobre você no seu nascimento?
- Você é incapaz de amar verdadeiramente. Mesmo assim eu estou lhe ofertando o meu amor, pois meu coração é límpido como as florestas que você mancha de vermelho com as suas caçadas...
- Você está apaixonado pela beleza, pois não há nada de comum entre nós. É impossível alguma espécie de amor entre nós. Você é repugnante...
A ninfa fugiu adentrando pela mata e desaparecendo entre as folhagens. Para o jovem Pã restou o silêncio e a perplexidade, que juntos fincaram a solidão em seu coração. No entanto, o amor tem razões que não aceitam a compreensão e Pã decidiu que a Ninfa lhe pertenceria. Passou a procurar por ela. A sua voz ecoou pelas matas e o eco entre caules, raízes e folhas encontrou o silêncio. Cada animal que encontrava, parecia lhe transmitir com o olhar uma espécie de amizade, algo que estabelecia uma estranha confiança, uma cumplicidade. Pã estremeceu. Talvez tenha reparado no olhar de algum animal um pedido de socorro, uma ajuda, uma proteção, mas tudo não passou de perturbações de sua mente, confusa por causa da rejeição sofrida.

Sua voz levada pelo vento ecoou no grito: Siringe! Siringe! Siringe...

Inútil.
Na manhã seguinte reencontrou a ninfa e passou a persegui-la pelo bosque. A pobre moça, caçada por Pã, correu desesperada, atravessou um riacho, penetrou na parte densa da floresta e fugiu apavorada. Pã não desistiu e continuou perseguindo-a. A perseguição foi acompanhada pelos olhos escondidos entre as folhagens. Veados, pássaros e tigres, em silêncio acompanharam aquela estranha caçada.Pã entre os caniços, Böcklin (Museu de Munique)

A insensível ninfa corria sem olhar para trás.

Implorou aos deuses que a ajudassem.

Eles resolveram salvá-la do amor de Pã.

Suas irmãs aparecerem para ajudá-la.

Ela é transformada em junco.

Pã, quando a abraça, está tocando apenas em caniços.

Comovido pelo som sibilante dos caniços, Pã constrói um instrumento musical, usando sete tubos de junco tem em suas mãos uma flauta a qual batiza com o nome da Ninfa.

A Caverna de Pã (Barraco, Roma) Tocando as flautas de junco Pã passou a atrair as ninfas que começaram a dançar ao seu redor, ao som da sua melodia encantada.
Rodeado de ninfas, o seu coração ardia na saudade do seu amor impossível.

Pã entristecido com a sua perda, transmitiu a dor no som da flauta e afastou lentamente as ninfas que bailavam em suas músicas.

O que passou a ecoar na floresta foi um som triste e plangente.
O deus preferiu a solidão e emanou um medo cujas ondas atingiram os corações.

Os calafrios no corpo, o tremor e o suor incontrolável: tudo isso passou a ser denominado Pânico.
Antes de decidir definitivamente pela solidão, Pã, ao reparar uma ninfa dançando tão envolvida com a sua melodia, e ao sentir que a ternura estava em seu coração, pensou por um momento que o talento pudesse ocultar o seu rosto.
Atraiu a ninfa até um rochedo alto, mas um  súbito vendaval  atirou a moça ao precipício.

Seu corpo foi imediatamente transformado em pinheiro (Pítis), homenagem dos deuses a Pã, o solitário  flautista das florestas.

Pã desceu, colocou um ramo do pinheiro sobre a cabeça formando um círculo.

Estava solitário e seu coração se alvoroçou. Lembrou daqueles que jamais fugiram da sua aparência. As criaturas mudas e indefesas da floresta: os animais.
Pã se comoveu com a idéia de que, com a sua flauta, poderia proteger os animais e as matas.
Pânico, o terror, o medo sem motivos, causado nos homens pela criatura tocadora de flauta de junco.

Condenado à solidão, inúmeras vezes subiu ao rochedo para contemplar o pinheiro e sempre sentiu que, ao colocar na boca o junco e soprá-lo, estava se aproximando da primeira amada perdida. Inconsolável, compreendia que nascera para a solidão.
Certa vez espreitou por entre as folhagens um jovem que, abaixado, mirava as águas de um lago transparente.

Tocou a sua melancólica melodia, mas o jovem, entretido com a sua própria beleza não a ouviu. Pã penetrou no âmago da floresta. O seu coração se sentiu como que atirado de um rochedo.

Protetor da natureza, passou a encontrar entre os animais os seus verdadeiros amigos, e, por proteger a natureza, passou a ser cultuado pelos pastores.

A sua alma se expandiu por todos os verdes, cerrados, campos e bosques e cobriu a natureza.

O tapete enverdecido do campo passou a simbolizar o seu coração eternamente solitário e quem tem os ouvidos atentos, quando está num bambuzal ou num canavial pode ouvir o vento sibilar, e interpretar como o som delicado da natureza.

Seu culto se estendeu, atravessou aldeias, selvas, mares e desertos, e se tornou universal, inaugurando o panteísmo no coração dos homens amantes da natureza.
Pã, tudo, filho de várias origens, sobreviveu em diversas lendas através dos tempos.

Um estóico conversando certa vez com seus amigos, o identificou com o universo.

Para o estoicismo, a identificação de Pã como universal perdurou durante um bom tempo.

Pã, fecundação, a própria expansão da vida:  Deus universal.
Para o povo simples sempre continuou como o protetor dos pastores, um deus agreste, das matas. Sempre permaneceu nos corações camponeses como a criatura plangente das matas capaz de estabelecer o pânico num exército.
Sob o reinado de Tibério, entre mais ou menos 20 anos da era cristã, um navio em direção a Roma, ao passar por uma ilha grega ouviu num vendaval uma voz que anunciava a sua morte. A noticia se alastrou em quase todas os cantos da Terra, desde a Arcádia até ao mais distante campo.

- “O grande deus Pã está morto!”
A Terra se pôs em prantos. Todos os povos choraram. Pã desapareceu. Uma nova era surgiu.
O mundo antigo se desfez dando lugar a uma nova sociedade. Os romanos receberam esse novo tempo do qual Pã não fazia parte.
Mas o antigo deus, que por causa da sua feiúra nunca foi amado pelas ninfas e que se metamorfoseou em deus de expansão universal entre uns e permaneceu fiel às florestas entre outros, nunca saiu por completo dos corações humanos.
Mesmo tendo se dissolvido com o surgimento de um novo império, Pã deixou como legado o amor universal que em distantes épocas surge em algum coração panteísta.

 RECONTADO POR MARCIANO VASQUES

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