domingo, 14 de março de 2010

PSIQUÊ



PSIQUÊ
“De que me adianta a beleza? De que adianta ser considerada a mais bela das princesas? De que adianta o rosto que miro no espelho, se durmo sozinha...”
“De que adianta, se o verde dos meus olhos passará, como passam os pastos verdejantes que ilustram a bela manhã ainda orvalhada de sereno...”
“De que adianta esta pele alva, essa expressão viva a latejar em minha face, como reflexo da alma preenchida pelo desejo de felicidade?”
“De que adianta esse corpo belo e sinuoso, esse joelho contemplado pela perfeição, esses braços claros e clamorosos de abraços, esses seios ricos de vida, visão exuberante, signo da vontade dos deuses, de que adiantam esses cabelos negros, nos quais reflete-se a luz azulada do anoitecer, de que adianta tudo isso, se durmo sozinha...”
“De que adianta a beleza, se ela significa solidão, se o que eu mais quero é justamente o que mais necessito, o calor do companheirismo, a delicadeza do amante, o desejo sincero do homem, as plangentes confissões do amor...”
E pensando essas coisas, Psiquê se deita sobre o seu travesseiro de macela, e se envolve com as rosas que a circundam, adormece, e como sempre, abraçada à solidão sonha com lábios quentes e vermelhos a lhe tocar timidamente a face rosada, sonha com as mãos masculinas passeando em seu corpo suave, sonha com suspiro de namorado, com os gemidos de amor, com as palavras de afeto.
E o vento da madrugada toca suavemente o seu rosto adormecido, enquanto os archotes são substituídos pela Lua, a mais fiel testemunha das confissões perdidas...
Psiquê, de todas as princesas, a mais bela, incomparável beleza, que desafia o encanto das deusas.
No entanto, continuava solitária, contemplada pelos homens, dormia solitária, pois nenhum homem dela se aproximava, nenhum se declarava, nenhum com ela queria se casar ou pelo menos, manifestava essa vontade. A sua beleza era uma barreira, um muro alto, de distância infinita, que impedia que ela fosse cortejada, que ela tivesse um companheiro.
A sua beleza era transformada pelos olhos masculinos em beleza de uma deusa, mas Psiquê não é uma deusa! É humana, sente como humana, É uma mulher.
Uma princesa, certamente, rodeada de confortos, de uma fonte azulada onde molha o seu rosto a cada manhã, de ramos de rosas entrelaçados nas paredes de seu quarto enluarado. Um palácio onde ela vive confortavelmente, tratada como a princesa que realmente é, admirada pelos jovens do reino e pelos príncipes viajantes que em seu lar param para descansar.
Mas, acima de ser uma princesa, é uma mulher.
Na ausência de confissões de amor, Psiquê vê se dissolvendo a cada manhã pelas escadas solitárias do palácio, os sonhos de felicidade, e nos ciprestes observa a sua solidão tomando forma, e no lago azul da ternura aonde vai freqüentemente renovar a sua vida e contemplar o reflexo do sol, vê refletir-se também o desespero de ser bela.
“Os homens têm receio de pedi-la em casamento, por pensar que você é uma deusa!” – diz, apreensivamente, o pai, solidário da tristeza da filha querida. - “Eles até estão edificando um templo para a sua adoração!”
“Que tolos são os homens!”- suspira a bela jovem.
Pai sempre se preocupa. O destino da sua filha o atemoriza.Vê a tragédia que se avizinha, sofre pela sua solidão.
Um templo erguido para a sua beleza. Isso pode trazer muito sofrimento, pois despertará a fúria da deusa Afrodite, a deusa do amor e da beleza, cujos templos de adoração estão sempre repletos de jovens, a maioria com o desejo de casamento no coração. Afrodite não perdoará. Nenhum deus aceitaria isso, um simples mortal ser adorado, um templo ser erguido para um mortal, isso é uma afronta, um desafio, uma estupidez.
O pai precisa salvar a filha...
Olha a cada manhã a jovem caminhando sozinha entre os pilares do palácio e toma uma decisão: decide consultar um oráculo.
No Olimpo, Afrodite furiosa, está dominada pelo ciúme.A deusa do amor e da beleza, sofre com o ódio que se instala em seu coração e com a feiúra do despeito. Para ela é insuportável a idéia de que um ser humano esteja sendo adorado, de que homens estejam erguendo templos de adoração para uma jovem humana.
“Bem que havia reparado que os meus templos estão pouco a pouco se esvaziando...”
Convicta da ousadia de Psiquê, e sem averiguar a inocência da jovem, que afinal não tem culpa da própria beleza, Afrodite resolve acabar com a farsa, pois compreende que um templo de adoração para um simples mortal não passa disso. Toma uma decisão e chama o seu filho, Eros, o deus do amor.
A linda deusa, vestida de branco, cabelos esvoaçantes, lábios vermelhos, olhos azuis como a safira, como o céu que entardece, como a serenidade do lago, pede a Eros que fleche Psiquê.
“Quero que você fleche uma mortal indolente, atrevida, que me desafia com um templo de adoração, quero que você a fleche e que o néctar de sua flecha se transforme num veneno e faça com que ela se apaixone pela criatura mais horrenda que existir”.
“A serpente do vale nefasto?” – indaga, perplexo com o descontrole emocional da mãe, cuja fúria ele bem conhecia, por tantas vezes que a vira transformada num vendaval arrasador.
“Sim! Se não houver outra mais horrível!”
E assim o jovem deus, com suas flechas prateadas, e as asas lilases, parte em busca da triste missão.
Não está satisfeito, ao contrário, está bastante aborrecido, pois se acostumara a injetar o amor no coração dos humanos com o néctar das suas flechas prateadas e agora, carrega consigo uma flecha negra. Mas não fora educado para contrariar a mãe.
A mancha lilás que sobrevoava a cidade era Eros, que cautelosamente se aproximou do palácio de Psiquê.
Primeiro a rodeou, observando-a, escondido atrás dos pilares. Durante todo um entardecer admirou a jovem, que com seu belo vestido dourado e o manto vermelho, passeava sobre as pedras do palácio, ao redor dos jardins.
Como que flechado pelo néctar enfeitiçado das suas próprias flechas, Eros se apaixona pela bela visão da sua vítima, e embaraçado diante da ordem da mãe, começa a questionar a sua própria atitude. Finalmente, serenamente decide que modificará a sua missão e desobedecerá a própria mãe, enganando assim a deusa do amor e da beleza.
Ao ver o pai da moça se aproximar, procura se ocultar atrás da pilastra, tomando o cuidado para que não vejam as suas asas lilases, e assim, cuidadosamente, ouve a conversa entre eles.
- “Filha, estou severamente preocupado com o seu destino. O que terão os deuses reservado para você? Tomei uma decisão. Vou consultar um oráculo”.
Eros, ao ouvir a conversa, teve uma idéia que o aproximava demasiado dos humanos. Como era amigo do oráculo, decidiu procurá-lo antes do pai de Psiquê.
Ao propor que o adivinho mentisse, teve uma surpresa inesperada:
- Eu não posso fazer isso. Um oráculo não pode mentir, por outro lado, não posso contrariar o filho de Afrodite. Não é justo, o que você me pede é muito difícil.
- Mas é por amor...
- Sim, eu sei. No amor vale tudo. Mas, se algum mortal souber disso, se algum humano desconfiar que o oráculo mentiu..., o que você está fazendo é muito arriscado. Nunca ninguém pediu uma coisa dessas...
Porém, o persistente Eros acabou sendo convincente e em nome da amizade o adivinho consentiu em participar de uma farsa. Estava decidido: mentiria para o pai da jovem. Além do mais, a causa era justa. O amor certamente move os mais intransponíveis dos obstáculos e a sua reputação continuaria íntegra, ninguém ficaria sabendo que, uma vez na vida, o oráculo mentiu.
E assim foi feito.
Ao ser consultado pelo pai de Psiquê, o oráculo profetizou algo atemorizante que tiraria dali em diante a paz do coração do homem.
Psiquê deveria ser levada ao tenebroso penhasco da Solidão. Lá deveria ser abandonada, pois a mais terrível das criaturas iria desposá-la.
O pai entristeceu. Sua alma sentiu-se atirada num precipício. Sua filha não merecia esse destino! Pela primeira vez, o bondoso rei questionou a justiça dos deuses: como é possível que uma criatura bela e doce pudesse ser atormentada por um destino tão atroz?
Mas, acostumado a obedecer aos desígnios divinos, comunicou o fato à sua amada filha. O pranto e a dor invadiram o coração de Psiquê.
Suas irmãs também choraram com a sorte da princesa. Todos, inconformados com a vontade dos deuses, entraram em luto e começaram a preparar a despedida de Psiquê.
No dia anunciado pelo Oráculo, a jovem foi deixada no penhasco pelos parentes.
Com lágrimas nos olhos, o pai e as irmãs abandonaram Psiquê ao destino dos deuses. Deitada sobre as rochas do penhasco, ficou a jovem com suas vestes brancas aguardando o tenebroso anoitecer.
Veio o vendaval, veio o frio, e permaneceu Psiquê no penhasco aguardando a chegada da maligna serpente.
Vestida de noiva, Psiquê começou a chorar e a lamentar a sua sorte, tanto gemeu, tanto chorou que, vencida pelo cansaço, acabou adormecendo.
Zéfiro se aproximou e a envolveu em seus braços. Psiquê foi levada para um lugar encantador, semelhante a um paraíso. Quando despertou permaneceu imóvel: estava em um palácio magnífico. Não compreendeu como chegara até ali. A delicadeza de Zéfiro, o deus do vento, o transformou no transporte digno de uma princesa.
O pasmo do seu olhar não se desfez. Estava num lugar maravilhoso, encantador.
Zéfiro voltava para as nuvens e no caminho comunica ao deus do amor que a sua missão estava cumprida.
Psiquê levantou-se e começou a caminhar por aquele belo lugar. Além das flores, das fontes, das frondosas árvores, descobre que está num palácio de cristal. Um lugar irreal? Seria uma alucinação, talvez o efeito da picada da terrível serpente? Teria sido possuída pelo monstro?
Não. Não pode ser. O que os seus olhos viam era verdadeiro. Estava mesmo num paraíso, e diante de si tinha um palácio de cristal, contornado por altos e belos eucaliptos. Mas, porque estava ali? Esse lugar em nada se parecia com a predição do oráculo. Que espécie de monstro habitaria tal lugar? Quem a possuiria num maravilhoso palácio de cristal? A serpente? Começou a rir. Só podia estar vivendo uma loucura.
Mal sabia que, enquanto caminhava, era observada por Eros.
Uma suave voz, vinda dos ventos, invadiu o ambiente e conquistou os ouvidos de Psiquê.
- Venha minha querida. Você tomará um banho de água cristalina, com aroma de ervas. Assim quer o nosso amo.
- Quem é você? Quem é o seu amo? Seria uma serpente horrível?
Sem obter respostas, Psiquê achou melhor obedecer. Ao se despir para o banho logo percebeu que estava sendo tratada como uma deusa. A sua incompreensão aumentou. Mas, são tantos os enigmas da vida...
Eros escondido numa nuvem, encantado observava a sua jovem.
Como nunca a usaria, parte ao meio a flecha negra e a atira longe. Aguarda ansiosamente o anoitecer, para descer ao palácio, onde terá o amor...
A princesa de extraordinária beleza, a única mortal que despertou a ira de Afrodite. Aquela, cuja beleza mortal esvaziara os templos de adoração da deusa da beleza divina, a mulher por quem Eros feriu-se de amor, caminha por um palácio de cristal.
Quando desce o anoitecer, uma voz pede que ela vá se deitar e lhe indica os seus aposentos. Quando chega ao quarto, Psiquê se deita e fecha os olhos, procurando adormecer.
Não tem idéia do que acontecerá com ela, mas tem a impressão de que o que a espera não é uma serpente alada, e o amor que viverá será tão belo quanto o palácio de cristal, para onde foi levada.
O quarto na escuridão. Está quase adormecida quando sente a suavidade tocar em seus cabelos.
- Não se amedronte. Amo-a tanto que jamais a machucaria.- disse a voz mais terna, que ela jamais ouvira.
A portadora da beleza humana cobiçada por um deus, ouve em silêncio e compreende que a voz suave que lhe acaricia os ouvidos, não pode ser de uma serpente maligna.
Mal sabe que ao seu lado está Eros, aquele que tornou o oráculo de Apolo o seu aliado nesta conquista amorosa. Aquele que enganara a própria mãe.
A mulher sente medo, mas o medo é afastado pelas ardentes carícias de Eros.
Entrega-se ao amante velado e assim foi a cada noite.O amor se fez sem que a amada desvendasse o rosto do seu amante. “Ninguém viveu tal felicidade”! - pensa Psiquê, com saudades da sua família.
E todas as noites Eros a visita em sua cama, e ela, cada vez que o ama, toca suavemente suas mãos de princesa nos contornos do rosto do amado e, embora a escuridão não permita que ela o veja, sente que não se trata de uma serpente medonha.
Certa noite, ao tocar no rosto do formoso deus, comenta:
- Eu confio no seu amor, mas eu não sei quem você é. Não poderia ver o seu rosto pelo menos uma vez? Não compreendo porque tanto mistério. Quem é você?
- São tantas perguntas. Peço apenas, por enquanto, que você continue me amando, um dia saberá quem eu sou, mas por enquanto, não é conveniente que me conheça .Mas,você é minha esposa. Continue confiando em mim...
E a princesa adormece confiante, sem saber que, ao ser amada por um deus, com esse amor torna-se definitivamente inatingível por um mortal.
E na escuridão, mesmo com o luar invadindo as frestas do seu quarto, ela jamais vira o rosto do amado. E cada vez que se amavam, se descobria mais apaixonada.
Porém, como sempre, mal o dia clareava e o sol despontava no horizonte das colinas, Eros desaparecia. E os dias começaram a se tornar solitários. Psiquê era feliz, mas durante o dia a solidão trouxe a saudade das irmãs e, embora numa noite o deus do amor tenha lhe prevenido da possibilidade de uma tragédia caso ela reencontrasse os mortais, Psiquê lhe pede um favor:
- Querido, eu confiei tanto em você e agora lhe faço um pedido. O meu coração chora a saudade da minha família. Permita que eu a veja. Por favor, é só isso que lhe peço...
- Você sabe o perigo que isso representa. Uma tristeza profunda poderá se abater sobre nós, é melhor você desistir dessa intenção...
- Mas, se me ama, como pode impedir que eu seja completamente feliz? Se me ama, como pode me negar um favor?
- Sim, eu a amo, mas quero o seu bem, e sei o mal que se aproxima. No entanto, se a sua vontade é irremovível, não sou eu que devo negar-lhe. Embora sabendo do perigo, certamente você terá o meu consentimento, afinal não saberia como dizer não para o amor...
E assim ela foi levada por Zéfiro, o impressionante deus do vento, ao encontro de sua família. Lá chegando, a alegria foi imensa. Psiquê conta ao pai e às irmãs a sua aventura amorosa.Desponta nas irmãs um dos mais comuns dos sentimentos humanos, a inveja.
- Esse príncipe, esse esposo, esse amante, afinal quem é ele? Você nunca viu o seu rosto, como se entrega assim?
- Sei que ele não é um monstro...
- Mas você precisa saber exatamente como ele é...
- Um dia eu saberei...
- Você confia muito no amor. Mas, e se ele a engana? Quem é afinal? Essa história não é convincente... Eu jamais faria amor com um estranho...
- Nem eu...
- Ele não é um estranho. Eu o sinto tão próximo, ele está dentro do meu coração, dentro de mim...
- Mas você precisa ver o seu rosto, pelo menos uma vez. Não se pode amar sem ver a beleza...
E assim os diálogos com as irmãs foram pouco a pouco implantando a dúvida no coração da princesa.
-“Estarão certas? É justo e seguro amar um estranho? Sei que não é o monstro que me aguardava, mas talvez eu deva mesmo ver o seu rosto. No entanto, será que tudo não passa de inveja? Que tormento! Como é difícil tomar decisões...”
Realmente, a jovem apaixonada não dera nenhuma importância aos avisos do amado misterioso e também não consegue decidir entre a suposta inveja das irmãs e a curiosidade de desvendar o rosto do seu amor...
A indecisão costuma implantar a fragilidade, e enfraquecida, Psiquê ouve as palavras das irmãs, que aos seus ouvidos soam carregadas de uma imaginária preocupação. Resolve seguir os conselhos, parte do principio de que a família só iria querer o seu bem.
- Não se assuste Psiquê, mas certamente com a luz do dia ele se transforma na serpente que o oráculo falou .Você deve tomar uma atitude. Só os demônios ousam se ocultar...
- Digam, o que eu devo fazer?
- É simples. Faça amor com ele como em todas as noites, mas assim que ele adormecer, você acende uma vela e a aproxima do seu rosto. Assim que você ver o seu rosto saberá se ele é a criatura monstruosa ou um belo príncipe...
- Sim, farei isso, cuidadosas irmãs, mas eu sempre pensei que a verdadeira beleza estivesse ocultada, que ela morasse dentro do coração...
- Engano seu,Psiquê, a beleza está no rosto, na aparência. Se esse seu amado se esconde na escuridão é porque boa coisa não é. Tome, leve essa vela...
- Obrigada.
Ao retornar, a princesa recebe uma nova advertência do amante, que se mostra aborrecido com a visita à família. Para ele um gesto premonitório, um sinal de que coisas trágicas poderão acontecer. Pede-lhe que tal coisa não se repita. Essa sua preocupação excessiva desperta em Psiquê a curiosidade e a desconfiança.
Na madrugada, após ter se certificado do sono de Eros, aproxima a vela de seu rosto.
Ao ver o belo rosto do jovem deus, estremece.O espanto com a beleza se mescla e se confunde com a felicidade imensa que sente.
“ Eu sabia! O tempo todo eu soube que ele não era um monstro”.
Mas a sua felicidade é bruscamente interrompida com o despertar de Eros.
- O que significa isso, Psiquê?
- Perdoa, meu amado...
- Você não confiou em mim. Vou-me embora. O amor exige confiança.
- Mas eu sempre o amei...
- Você não me amou o suficiente...
- Não seja ingrato, eu me entreguei ao seu amor, sem conhecê-lo.
- Mas não sossegou enquanto não visse o meu rosto. Certamente a beleza está para você em primeiro plano. Certamente a aparência regozija-lhe a alma. Adeus, Psiquê.
Enquanto o amado partia, finalmente o reconhecia como o deus do amor, pelas esculturas que havia visto nas cidades por onde passou.
O filho de Afrodite parte para as nuvens. Nenhum poema poderia traduzir as lágrimas de Psiquê com a medonha solidão que repentinamente se instala em seu coração.
A jovem que um dia atraiu mais gente do que Afrodite, agora chora em seu leito de solidão.
Seu amado, surgido do caos, não mais voltará?
Nada se compara a visão de Afrodite quando ela aparece para um mortal e Psiquê tem esse privilégio. Após meses de andanças, invoca aos prantos o nome da deusa, sem imaginar o quanto esta tentou prejudicá-la.
- Ajude-me, formosa deusa.
- Por sua causa, meu filho me traiu. Como posso ajudá-la?
- Eu imploro! - clama a jovem banhada em lágrimas. O tom plangente das suas palavras sensibiliza a deusa, que afinal sempre sentira ciúme da beleza de Psiquê, porém não o ódio.
- Está bem, vou ajudá-la, mas você terá que cumprir algumas missões.
Quando você necessita de ajuda aceita quaisquer condições. E Psiquê, desesperada, concordou com a deusa.
- Atrás daquele arbusto há um saco repleto de sementes que você deverá separar, uma por uma, até o anoitecer.
- “Mas é impossível!”- pensou.
- Tenho certeza de que você conseguirá, pois nada é impossível para quem desafiou a ira de Afrodite. - disse ironicamente a deusa, como se pudesse ler os seus pensamentos.
Psiquê executa a árdua tarefa com a ajuda das formigas. Ao apresentar-se para a deusa, causa-lhe espanto.
- Como você conseguiu? Era humanamente impossível! Bem, não importa. Você é corajosa.
Dizendo isso, Afrodite apresentou-lhe a segunda tarefa: tosquiar as lãs de ouro de um carneiro.
- Psiquê contou com a ajuda de Zéfiro, que lhe mostrou a solução. Bastava arrecadar os novelos de lãs que ficavam presos nos espinhos dos roseirais, quando os carneiros passavam por entre eles. E assim foi feito.
Mais uma vez, a jovem surpreendeu a deusa, que lhe ofertou um novo desafio, enquanto ordenou –lhe que dormisse diariamente no chão e se alimentasse apenas de pão e água, para que o agreste interferisse na sua beleza e a fraqueza diminuísse a sua determinação.
- Você deverá descer ao inferno e pedir a Perséfone um frasco com a fragrância da sua beleza. Traga-o sem abrir! O que estará aprisionado no frasco é a água da juventude. Eu preciso de um pouco da beleza de Perséfone para me revigorar.
Mas, a exemplo de Eros com o oráculo, Afrodite combinara com Perséfone, a do triste destino, para que ela colocasse, no lugar das essências da sua beleza, outra coisa.
Partiu. Acompanhada por Zéfiro chegou ao inferno. Lá do alto viu o barqueiro, e desceu aos portões. Atormentada pelos demônios, conseguiu chegar até Perséfone, cuja beleza impressionante a perturbou.
Aproximou-se da esposa de Hades, que vestida de vermelho, com os longos cabelos dourados, cor de fogo, e olhos fundos, extremamente solícita, perguntou-lhe o que queria.
Psiquê implorou pelo frasco. A estranha figura, comovida com o sofrimento da jovem, preveniu-a :
- Não abra jamais este frasco. Entregue-o fechado para Afrodite. O seu conteúdo lhe pertence. Seja prudente, menina.
Talvez prudência não combine com vaidade nem com curiosidade, e no caminho as palavras bondosas e o alerta de Perséfone, se dissolveram na memória dos ouvidos de Psiquê.
Abriu o frasco.
Em vez de encontrar a água da juventude, do frasco espalhou-se no ar um mortífero gás, que a envolveu num infinito sono.
Vaidade, unida aos poderosos tentáculos do ciúme, levaram-na para as subterrâneas trevas do sono.
Inconsciente, com o sono da morte, Psiquê despertou a atenção de Eros, que do Olimpo acompanhava todos os passos da amada.
O grande amor desfere nas rochas da mágoa golpes profundos e a rocha dissolvida abriu as portas do coração de Eros, para que entrasse a sensata brisa do companheirismo.
Foi até Psiquê e, ao encontrá-la desfalecida, tocou em seu corpo com uma de suas flechas. A jovem despertou e ao ver o rosto do amado, não conteve o choro da felicidade.
Levou-a ao Olimpo.
Com o consentimento de Zeus, se casaram.
Psiquê tomou o néctar dos deuses, tornando-se imortal.
Quando Zeus lhe oferece a Ambrósia, comenta:
- Seja bem vinda!
Unindo-se a Eros, vive o seu merecido amor por toda a eternidade.
Certa noite, Eros sobe no mais alto dos penhascos e, diante das estrelas, ergue o fruto do seu amor: Volúpia.

 
PSIQUÊ, recontado por Marciano Vasques

 

Um comentário:

  1. Gracias Marciano por contar esta maravillosa historia de la mitología.

    Un abrazo desde Valencia. Montserrat

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