domingo, 18 de abril de 2010

O OLHAR QUE MAIS SE ATREVE






O OLHAR QUE MAIS SE ATREVE


Havia um pensamento em voga que dizia, ou melhor, rezava, que poesia era coisa de mulher, comentários que traduziam o coronel que era esse país. Bem, aquilo sempre me atraiu, se poesia fosse coisa de mulher, tinha então um significado especial, pois as mulheres eram as responsáveis pela vida, e sempre relacionadas com a doçura, e hoje sei que não é bem assim, essa coisa do monopólio da doçura é invenção do mesmo sistema que sempre oprimiu a mulher, mas, vamos lá, comecei a pensar na poesia.
 
Ainda vitimado por estereótipos que interferiam violentamente em minhas reflexões, deturpando consideravelmente a pescaria dos pensamentos, a alma feminina, com firmeza defendi. Desde cedo aprendi que é preciso insistir em algo que não se apresenta com clareza. E nunca se apresentou claramente para mim um argumento convincente sobre a necessidade de se oprimir a mulher.
Mas a resistência dos opressores é mais brutal do que pode imaginar um simples lutador e atira em todas as direções, -piadas, criações publicitárias, livros didáticos, etc, e é preciso ter o destino da poesia para se compreender a dimensão da opressão.
 
Esse destino está vinculado à luta sem trégua contra as fontes que oprimem, - e o caso da mulher está intimamente ligado ao de outros oprimidos -, como numa declaração de irmandade, vamos dizer, um círculo universal, afirmativo que diz: nenhum ser será oprimido. 
 
Foi preciso que a vida, em sua complexidade, mostrasse-me que a mulher é um ser humano e não pode ser estereotipada. Tive chefes mulheres terríveis, o que me lançou numa tese pessoal de que elas nunca tiveram o poder, então com o poder que uma ou outra consegue, acabam aderindo ao autoritarismo, tentam inconscientemente se aproximar da mentalidade masculina, acreditam no autoritarismo como uma defesa, é por aí...
 
Veja, o poeta, que vive outra lógica diferente da lógica dos EUA que vigorou décadas, que foi uma lógica sanguinária, de capitalismo desenfreado, que colocou a motivação econômica acima da segurança e da sobrevivência do planeta,  a lógica da burrice, que precisaria ter despertado a juventude do mundo inteiro, pois só ela, a juventude num levante ameaçador, fazendo a sua voz varar todos os continentes, tornando-a continental e agitando os oceanos, só ela, a juventude, a preservadora das lutas, poderia mesmo modificar o pensamento bestial, ilógico, insensato e burro de tais sujeitos. Se a juventude se levanta, os velhos vão atrás.
 
O velho que se esquece que foi moço é idêntico ao moço que não se reconhece num velho que passa. Uma certa indústria estabeleceu a juventude como a idade ideal, impôs essa bobagem por força e natureza do mercado, e com isso agravou distâncias, privilegiando uma idade em detrimento de outras, atendendo assim numa pseudo-inocência, aos interesses mercantilistas que regem tudo no mundo hoje, inclusive a ausência da poesia...
 
E a poesia, que ciclicamente ameaça descer sobre a terra, poderia contribuir fortemente, aliás, a juventude vai atrás da poesia, ela não tem culpa se escondem a poesia, mas sempre foi assim, ela sempre procurou a poesia, pergunte aos garotos que amavam os Beatles...
O poeta, que vive outra lógica, que tem os olhos atentos, o único que vê e recolhe o que os outros nem sequer ousam imaginar que exista no cotidiano, o poeta vê onde outros não se atrevem, isso, se não me falha a memória, é Eugenio de Andrade, poeta português de barcos, seixos...
 
Então, ele, o poeta da lógica estranha, aquele que só consegue dizer poeticamente, aquele que diz poeticamente o mundo, como fica diante disso? Diante da lógica do país desenvolvido que é o EUA, filho do protestantismo inglês, filho do empirismo inglês, como fica o poeta? Conseguirá dormir em paz enquanto a juventude consome os mclanches da vida, e pipocas, e música de poesia rasteira e entulhos lixeirais que são transformados em arte, por uma indústria voraz, perversa, alienante?...

Ora, a coisa que aliena a juventude precisa ser extirpada...
Poeta não tem poder nenhum, só o político tem poder. Todo aquele que tem poder está vinculado ao político, ao ser político, ao ideal político, à cobertura política, a uma idéia política. O empresário que monopoliza os preços, a polícia,enfim. Poderoso não se vincula ao poeta, à poesia, pois ela não dá poder. O seu poder é outro, não é um poder visível, de efeitos imediatos, não é um poder consumista, materialista, etc, não é um poder ilusório, efêmero...
Justamente na aparente falta de poder do poeta que reside e resiste o seu chamamento. O poeta resiste porque chama. Esta é a sua chama: o seu chamamento paciente...
 
Ele pisca, a sua luz é aparentemente frágil, como a do vaga-lume diante do néon, diante de um holofote. Essa luz atuando que precisa ser reparada, e, se for possível, repensada. Reparar é a cortesia da distração. Talvez chegue o dia em que a poesia descerá sobre a terra e o poeta deixará de se esconder nas academias, nas agremiações, e poderá viver nos lugares onde a vida escorre...
A aparente inutilidade da poesia é a chaga da sociedade, é a sua ferida que não cicatriza, é o seu machucado infame.

O machucado infame da sociedade. As pessoas passeiam no shopping. O poeta apenas observa. Todos parecem que estão em estado de ‘Natal’: comprar, comprar, comprar. A observação do poeta é o fato invisível, é o fato desprezado, o seu olhar não reluz nas vitrines, nas luzes coloridas, nas atrações do shopping. Ele, o poeta, não quer uma ágora, talvez procure a nova musa. A musa necessária, a musa urgente agora é outra, é a chuva, a feira, a fábrica, a tecelagem, as fibras e os sulcos nos rostos, a terra, enfim, a vida, o mundo, o planeta, a Terra.

Talvez o poeta tenha finalmente adquirido a consciência da nova musa.
As pessoas que estão no shopping talvez não tenham consciência da necessidade da poesia e talvez digam que a poesia não seja afinal necessária, como dizem da filosofia, e talvez tenham uma relação falsa com a poesia, uma relação murcha, quebradiça, ingenuamente hipócrita, e se relacionem apenas com a leitura do dever cumprido.
 
A leitura do dever cumprido é ler muito raramente algum livro de algum poeta famoso e muito citado e assim se fica com a impressão do dever cumprido, por se ter lido Drummond ou outro poeta consagrado, e talvez seja até possível se decorar algum trecho ou alguma frase ou até mesmo algum poema e depois num encontro entre amigos possa então se citar o autor. 
Longe disso está a relação com a poesia, essa coisa que exige calma, paciência, e tempo, ou seja, o avesso de tudo, o avesso da correria, da falta de tempo.


Ou então, haja uma também ingênua relação com o livro, uma deformação contemporânea, na qual o livro surge como o objeto de consumo lembrado em datas especiais para ser dado como presente para alguém, como se dá qualquer outro presente.

O livro perde a sua essência, assim como a música o seu significado na compra vulgar do CD. Você presenteia alguém com um livro sem se importar com algo além disso. E será melhor ainda se livro tiver uma capa atraente, o que significa, luxuosa, o luxo passou a ser necessário e substituto do verdadeiramente essencial, e isso, veja bem, não é   uma questão editoral, pois a editora tem mesmo é que deixar o livro cada vez mais bonito e atraente. 

O verdadeiramente essencial? Haverá  tempo para tal coisa  na mente que vagueia no mundo quando o mundo é um imenso Shopping?

O que estou dizendo é que o luxo passou a ter uma importância descabida nos critérios pessoais, tomando o lugar do que é o essencial. A convivência harmoniosa entre os dois na mente da multidão parece algo distante. Quem presenteia o livro sem amar o livro, coloca o luxo acima do esmero na mensagem. Melhor o livro com uma capa atraente, luxuosa. E o ideal seria ver a criação artística da capa, com a sua mensagem. Isso devia ser o rosto do livro na mente da multidão.
 
Uma sociedade que ignora o poeta ou não o valoriza é a mesma que convive com a violência e o descaso.
 
A ausência do poeta já é uma violência, uma deformação; que adianta luxo, luzes, vitrines, se o poeta está ausente, se a poesia está ausente?
 
O descaso com os produtores da poética é simbólico na sociedade que suja as calcadas, que suja a cidade, ignora os torturados, e finge hipocritamente que a criança que dorme abandonada nos cantos imundos da sociedade não é também o seu filho, e não vê, (porque a vista não alcança, está embaçada), que a criança veio ao mundo para nos salvar. E também não tem nada a ver com a morte dos presos, pois afinal guarda dentro de si estranha semente da pedagogia do castigo e o inconfessável prazer pelo sofrimento que não lhe afeta.
Sociedade sem literatura, sociedade sem poesia... Como se ignora os escritores, como se ignora os poetas...
 
O poeta e o escritor, pelo fato significativo de não se esconderem no mundo acadêmico, viverem nessa situação intermediaria, de produção intelectual, de refinamento da linguagem, porém no mundo do leigo (embora confusamente recolhidos em academias, grupos, agremiações, etc); sofrem.
É curioso o fato de que alguém possa responder o nome de Drummond ou Machado de Assis (é sempre o mais citado como sinônimo, como confirmação de leitura, de convivência com os livros, de apaziguamento mental, o grandioso Machado de Assis) e então cite talvez Jorge Amado e ultimamente com mais freqüência Paulo Coelho e entre as mulheres, quem? Quem? Talvez, talvez, Cecília Meireles... Infelizmente é assim.

A resposta Machado de Assis é um vicio, um hábito, um vicio circular (Atenção! Nada a ver com o valor do escritor! O que estou querendo passar é um acontecimento cultural vigente em nosso modo de ser contemporâneo), um costume adquirido, um senso comum, estabelecido, fincado.Talvez adquirido, quase com certeza nos bancos escolares (a idéia de bancos escolares sempre me remete ao grandioso mestre Paulo Freire, em suas considerações sobre a educação bancária). Algo parecido se dá com a repetição quase mecânica nas discussões sobre nomes de bandas e artista da música, aqui no caso, obedecendo aos desígnios midiáticos.
 
É errado também se considerar o poeta como dono da sensibilidade, ele é apenas o ser sensível em si, que expressa, que se manifesta, que manifesta a sua sensibilidade de uma forma especifica. A poesia é a sua forma de dizer. Ele só consegue dizer poeticamente.
Não peça que ele diga algo cientificamente ou politicamente ou academicamente, pois ele saberá dizer poeticamente. É isso o que o distingue na multidão. Não é a sensibilidade em absoluto, mas sim a forma de dizer. Ela abre as portas para o ser que é.
 
Carreguei comigo durante anos o entendimento de que eu, por ser poeta ou considerado assim, fosse o dono da sensibilidade, o portador máximo da sensibilidade,
Poderia talvez ser o seu catalisador, oferecer-me como palco para a representação da sensibilidade, mas não, em absoluto o dono da sensibilidade, o que fatalmente criaria estereotipo sobre o poeta, que passaria a ser o representante da sensibilidade, como se cria estereótipos sobre o cientista, que aparece como um lunático, e isso atende a interesses esotéricos, místicos, e assim...

Foi preciso ter convivido então durante anos com pessoas que têm uma sensibilidade acima da minha, para compreender o quanto eu estava errado e o raio de visão da gente às vezes é muito curto.
...Ter convivido com pessoas extremamente sensíveis, porém que não se manifestam como poetas, não se manifestam da mesma forma que eu.
 
Não dizem com as palavras o dizer poético, mas dizem com os gestos, com o modo de ser e viver, dizem o dizer poético. Cabe ao poeta então registrar isso, a forma dessas pessoas dizerem poeticamente a vida.


MARCIANO VASQUES

Um comentário:

  1. Hola Marciano:

    La Sociedad de Consumo tiene un Poder Material.

    El Poeta, la Poesía, tienen un Poder Espiritual.

    A veces, sanan, a veces hacen emocionar, a veces hacen llorar.

    La Poesia abre sentimientos.

    Gracias por esta entrada y por estas reflexiones sobre la Poesía y el Poeta.

    Un abrazo, Montserrat

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