quarta-feira, 23 de junho de 2010

SARAMAGO


SARAMAGO



Ouvi a sua voz. Eu estava num deserto, talvez, ou num sonho. Mas hoje, um dia de triste notícia, compreendi que a vida se renova a cada amanhecer, a cada final de entardecer.
As árvores que passam, as folhas a se despreenderem, o pólen lançado na ventania executando valsas invisíveis para os olhos embotados de cotidianos. Plantas percorrendo distâncias em suas genealogias poéticas e verdes. Plantas que atiçam sorrisos sob a chuva leve.
A vida se renova. O que morre renasce, e esse é o mistério. Renasce noutros corpos. A ideias serpenteiam num fluxo lampejante cobrindo de verbos as almas que almejam embelezar o mundo. O pensamento vaga e voa, sobre capinzais, bambuzais e varais.
A vida se renova. O que morre renasce noutros sonhos, germina, e morre para renascer.
Seu nome há de ser pronunciado em aldeias, em vilarejos, em acordes, em rabiscos, e será esquecido e relembrado e você estará presente no ciclo das palavras doces e esfomeadas.
E seu rosto será redesenhado com toda candura, todas as chuvas leves, toda a doçura, e a meiguice tardará, e virão temporais, e arrogâncias, e novos quebrantos, e sinas serão passageiras nas vidas insensíveis e nas transbordantes, e sinos badalarão. E temporais de incertezas, de amarguras, de rotinas estéreis...
E a louça, o vidro, o odor das flores banais, das orquídeas efêmeras, e das flores inesquecíveis, e o café requentado, a sopa quente, o pão saboroso saciando a fome, as calçadas...
E o cacto, e a fragilidade de miosótis, e dirão: aquele que ganhou o Nobel, e o seu idioma sobreviverá e se fortalecerá com o sangue pulsante nas feiras, nos mercados, nas gôndolas, nos mocambos, nos barcos, nas festas, nas estações ferroviárias, nos amantes nos quartos de motéis, nos encontros casuais, nas crianças correndo, rompendo o vento, abrindo passagens, rasgando capinzais, saltando valetas, cortando canaviais como vultos incandescentes faiscando em cerrações, em neblinas.
E só por uma gota de orvalho deslizando suavemente na folha lisa, e só pela fumaça do forno, pela poeira nos olhos, pelo manjericão exalando seu frescor, e só pela lentidão das azaléias, só por essas coisas valeram as suas palavras.


MARCIANO VASQUES


2 comentários:

  1. Meu amigo

    sou portuguesa, li seu texto e o achei muito bom.
    J.Saramago, talvez seja esquecido, mais cedo do que se pensa.

    Nos últimos anos ele mudou bastante, daquele tempo em que escreveu "O Memorial do Convento" um dos melhores livros dele.

    Só a história o pode julgar e ainda, é muito cedo para isso.

    Temos muito bons escritores em Portugal e poetas também. Saramago não é o Deus, em que ele próprio, não acreditava. E ele sabia disso...

    O seu texto tem valor,não está em causa, mas o realizar do sonho, pode não ser assim, tão
    fácil.

    O tempo terá a última palavra.

    Maria Luísa
    pode é não ser assim realizável

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  2. Amigo, Marciano

    A vida renova-se a cada instante, e vale pelo som que vibra deste texto. O que foi, foi e neste momento,com tristeza ou não, as tuas palavras valem tanto ou mais como as dele.

    Beijo com carinho
    Carmen Ezequiel

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