domingo, 17 de outubro de 2010

O PROVOCADOR DAS MANHÃS

O PROVOCADOR DAS MANHÃS

Zanoto, o cronista de Varginha, é um provocador. Na sua paz vai, com seu estilo de ser, provocações pincelando. Uma dessas provocações foi em 28 de março de 2000 com um tópico da sua coluna.
Comenta como é dura a vida de cronista neste país. Recolhe opiniões, remexe nas cartas e então me vejo convidado para dar uma resposta, opinar sobre o assunto, enfim, participar do debate esboçado na página do Correio do Sul.
O cronista, artista da manhã porque a manhã é a sua hora, o jornal é a sua casa, a morada das crônicas; ele tem uma ligação,digamos, uma cumplicidade com o leitor que é única. É, podemos afirmar, o café literário, o encontro possível no dia rotineiro, essa é a sua particularidade. Ele esboça o desfazer da rotina. Uma crônica não se esquece. Ela nos engana, vem chegando de mansinho, disfarçada, fazendo de conta que não é pretensiosa.
O cronista também está no rádio, sempre esteve. Lembro-me de um homem diante do espelho se barbeando, e dos seus olhos lágrimas vertidas,ou melhor, traduzidas, por causa do cronista que retratava, ao meio-dia do domingo, a vida de um jogador de futebol. O jogador de futebol era o grande ídolo, o belo modelo, o herói que se colocava acima da vida dos homens que ouviam o rádio no fim de semana. Um exemplo a ser seguido, exemplo de persistência, de coragem, de lealdade,de amor, de dignidade, exemplo ético incomparável.
Isso não volta mais. Nem o futebol como era, nem a vida que virava crônica que emocionava. O jogador não estava associado com o dinheiro, com o comércio, e a crônica era ainda a alma do domingo, que revelava distraidamente lágrimas no rosto do trabalhador.
O cronista com sua simplicidade literaliza a vida, torna-a mais atrativa quando revela o lado poético das coisas que são, a alma oculta do cotidiano, o coração do dia. Penso no homem, na mulher que nunca leu uma crônica. Um conto é um conto, uma poesia é uma poesia, mas a crônica é algo intermediário, um passeio matinal por uma calçada.
O cronista tem um compromisso diferente com o cidadão, um compromisso diferente,  por exemplo, do escritor best-seller. Talvez ele seja o verdadeiro mago no sentido de que o leitor do jornal, que sai para tecer o dia, quando leva o espírito imbuído de uma crônica , é alguém com mais chance de opinar, de mergulhar no pensamento reflexivo, de questionar amigavelmente uma circunstância, uma idéia política, uma aspecto da cidade. O cronista vai catando nas esquinas, nas faces, nas ladeiras, nas conversas, os fragmentos para a sua crônica. A crônica efetivamente não é algo pequeno.
Já li, não me recordo onde, que a crônica é um gênero menor (como se fosse certo se afirmar isso em literatura!) ou, uma literatura menor,como já se falou da Literatura Infantil e da trova. Sobre a crônica já se disse que se aproxima mais do jornalismo do que da literatura (como se um estivesse absolutamente tão distante do outro!), etc. Bem, já li tanta coisa...
De qualquer forma você pode trilhar em várias interpretações, inclusive acadêmicas, que normalmente têm os seus próprios caminhos, não que eu lhes tire os valores,mas reconheço que nem sempre é interessante ir à contra-mão.
Mas é difícil, caro Zanoto. Como é difícil! Tão quanto a vida do poeta ou de qualquer outro artista neste país,inclusive e principalmente o do circo ou o que exala de sua pena o cheiro do pão quente, da graxa, dos trigais, do pó da estrada, da poesia que se desprende das folhas entardecidas ou do orvalho que se abre para o assentamento do olhar rotineiro e se oferece como a fresta para a recuperação poética do dia.
Se não fosse difícil a sua vida, algo estaria deturpado, pois é o artista da palavra que remexe com o coração,que busca na riqueza dos detalhes esquecidos as formas para se expressar, que garimpa, quando o dia, a política nacional, o mundo, a vida, recebem o seu crivo, o crivo do cronista,que significa um descuido (e também um cuidado) minucioso, uma escrita arraigada de atenções, de cortesia. É o que nos chega assim, de forma tão cortês, nas manhãs, e nos alerta para a necessidade de uma distração, nos retira da mesmice- para usar uma palavra em graça (e um tanto quanto sem graça!).
O seu coração é crônico, está nas pautas, é crônico no sentido de duração, de prolongamento do sentir, da percepção, e uma crônica, acredito, não é mesmo algo que se dissipa.
Espero, amigo, que tenha contribuído de alguma forma para o debate , e correspondido ao seu chamamento.
 

MARCIANO VASQUES

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