quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CONTRA O ANEURISMA SOCIAL


Hoje é fácil ser tragado. Entrar numa goela, um tronco, ser aspirado, sugado, escorrer para dentro de um funil, um canal cada vez mais estreito. Equilibrar-se numa frágil esteira ao ar exposta. Que a qualquer momento romper-se pode. 

Dias de agressividade. Torcidas que idiotizam a alegria do esporte, malhação insensata deformando o sentido original da auto – estima para com o corpo, uma legislação de trânsito que não atende aos interesses insanos de muitos motoqueiros, escolas cercadas de violência, com salas de aulas nas quais o professor ocupa seu tempo precioso na defensiva, igrejas barulhentas a desrespeitar o direito alheio ao silêncio, música agressiva, o cidadão sendo iludido pelos jogos oficiais patrocinados pelas instituições financeiras governamentais. No país vidas desgovernadas. Famílias que perderam a ponte do diálogo. Um tempo triste.

Tempo maquiado pela televisão, pelas revistas de celebridades; muita confusão transformando o cidadão na marionete desejável pelo sistema obscuro.
Uma saída possível é a preservação dos referenciais interiores. O confronto amoroso com o outro ajuda a encontrar a sua formulação inicial na olhar pescado por eles, que preservam o significado mais profundo de cada fase da vida.
Na infância a literatura infantil, as histórias em quadrinhos, as vozes que narraram histórias, que resgataram poderes ancestrais: poderes da palavra oral, sonhos, os desejos mais íntimos, mais profundos, a alma exposta em fábulas, em contos, em causos, em lendas.
Na adolescência as vozes essenciais, e a música que se ouviu.
Os meus referenciais são de uma importância que não pode ser esquecida, e aportam no sentido da salvação da alma diante do abismo da agressividade típica da época.
Contra a instalação da descrença na vida, e para a preservação do tesouro individual – antídoto contra a violência dos dias que foram ofertados para o nosso viver – , é seguramente necessário o ancoradouro das referências individuais.
O deslocamento do coletivo, o pedido de licença para a contemplação da solidão, a urgente saída para o interior, para o silêncio, para o cultivo da memória dos referenciais interiores, pode devolver o equilíbrio que protege.
O exterior não oferece segurança nem garantia, e nos torna reféns do coletivo, o que significa, distribui a cada um a sua cota de participação no universo da agressividade atual.
Não importa a cada um quais sejam os seus referenciais, desde que não se comparem nem se aproximem dos atuais. Os seus referenciais interiores representarão a fortaleza para que possamos compartilhar de feixes de luzes isoladas que tentam reverter o quadro coletivo das sociedades deterioradas que sobrevivem nos escombros da razão amorosa.
Farão isso se tiverem a chance de serem içados e trazerem à tona os seus benefícios. E representarão aos que se detiverem e por um momento oferecerem os sentidos para uma fuga e o exercício da atenção, a saudável oportunidade de uma lapidação, através da exposição do que para você quer dizer: o melhor, o mais profundo de cada fase de sua vida.
Pense nas vozes que cantaram em sua vida, pense por exemplo nas vozes femininas, as da sua adolescência. Não se importe se as canções parecerem bobas, se apenas falarem de amor. Retome isso como algo imenso que poderá devolver o sentido original da sua vida. As vozes femininas influem beneficamente na lapidação do ser. São vozes dotadas de endorfinas sonoras, analgésico aéreo que não se dissipa quando pela alma é captado. José Lins do Rego nunca se esqueceu da sua contadora de história. Sherazade salvou a todas as mulheres. E as vozes femininas que cantaram as doces canções da juventude não podem ser dissolvidas na memória do coração.
Quando a delicadeza de uma voz for esquecida algo assustador estará tomando forma dentro de você, algo que poderá nutrir a criatura horrível do coletivo, o monstruoso ser da indiferença, por isso de vez em quando talvez sejam necessários os olhos fechados, a volta para o dentro. Com eles fechados certamente também as pipas voltarão ao azul.
O menino que brincava com o pai de esconde-esconde e dizia: Já me escondi, e estava com os olhos fechados, ou seja, ele se escondeu lá dentro, estava escondido dentro dele, e isso valia na sua lógica, e o pai podia fingir que o encontrava, para que a brincadeira prosseguisse. Esse menino nem podia imaginar o quanto tinha de razão dentro dele.
Por isso execute a brincadeira da volta para si, visite novamente o seu interior, busque as suas lembranças mais suaves, finja que está novamente ouvindo uma canção antiga, na voz feminina que emocionou a sua adolescência.
Faça como eu, que escolhi a minha voz. E às vezes me pego a fingir que ouço a delicadeza da voz da cantora que emocionou a minha adolescência, e penso com tanta alegria que estou diante de doces canções e outras, tão singelas, mas que tanto bem me fizeram, e que hoje, na distância do tempo, são mecanismos internos de defesa, tesouros da adolescência guardados e a me proteger, e tanto a voz da minha cantora como aquelas canções quando ao ouvido da memória retornam, no meu caso bem sei que são antídotos, evitam o aneurisma social.
Agem dentro de mim, como outras vozes e outros motivos, um simples objeto que se tem como lembrança, poderão agir dentro de você, princípio de toda mudança.

MARCIANO VASQUES

Um comentário:

  1. amigo, todos estamos sendo tragados, por todos, queiramos ou não, infelismente essa é a mais pura verdade, bjus tere.(triste).

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