sexta-feira, 22 de abril de 2011

OS ABANDONOS DO MUNDO

— Sapabela, o boto-cor-de-rosa vive sob ameaça de abandono na Amazônia...
— Ameaça de abandono? Isso é triste! Os sapos são especialistas em abandonos...
— Do que está falando, Sapabela?
— Olhe ao seu redor...
— Não estou vendo nenhum boto...
— Mas deve estar vendo aquele sapinho na calçada...
— Sim, aquela criança parece abandonada...
— Ela está abandonada, Rospo!
— Incrível!
— Rospo, vai dizer que nunca viu uma criança abandonada?
— Claro que já vi, e tem um monte em seus lares diante da televisão...
— Ora, Rospo! Abandono é coisa normal. Faz parte do cotidiano. O Sapo adora abandonar. Abandona crianças, abandona cães e gatos, abandona ideais, abandona sonhos, abandona botos de todas as cores...
— Eu pensei que só existisse o cor-de-rosa...
— Sabe, Rospo. A primeira conjugação verbal que deveria ser ensinada às crianças poderia ser: Eu abandono, tu abandonas... Mas, ocorre que devemos ensinar aos pequenos que o abandono é a coisa mais feia que existe...
— Quem abandona deveria pagar por isso!
— Sim, Rospo, acontece que o abandono não tem dono.
— Que frase bonita, Sapabela!
— No futuro será anônima... De autor desconhecido...
— É assim que acontece...
Isso também faz parte de um tipo de abandono, não é?
— Sim, o abandono intelectual, mas essa é outra história.
— Vou esperar por ela.
— Pois é, o abandono não tem dono, o abandono é provido de muitas fontes, é uma profusão de origens. Quando tem um abandono, acredite, ele só existe porque muitos são os responsáveis. Quando você passa diante de uma criança abandonada e se omite, fica em silêncio, ou segue seu rumo na calçada da indiferença, você também é um dos responsáveis,  também participou desse abandono...
— Ora, Sapabela, mas eu não vivo na Amazônia...
— Para o boto isso não interessa. Ele precisa da sua voz. Você é um cidadão do mundo, então, todos os abandonos do mundo interessam a você... A menina abandonada, o cãozinho, a poesia que alguém não terminou...
— Sapabela, então vou viver só de abandonos?
—  Adoro as suas provocações, Rospo. Mas é isso mesmo. Somos os responsáveis por todos os abandonos do mundo...
— Sapabela, vou me aprumar.
— Isso mesmo, Rospo. Para ser cidadão do mundo, tem que ter alguns princípios na mente. Um deles: jamais abandone um abandono. Faça o que estiver ao seu alcance, mesmo que seja comentar com alguém...
— Isso é pouco, Sapabela.
— É nada, Rospo, esse alguém pode ter um blog.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2011 — 541
Marciano Vasques

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5 comentários:

  1. dessa vez suas palavras tocaram minha alma, porque me sinto abandonada, porque observo mães que não abandonaram seus filhos, mas também não cuidaram, porque quando você decide proteger alguém do abandono que lhe foi imposto você já está desamparada, ou pior, julgada e condenada, não se deve interferir, importar, tentar amparar, o normal, é a indiferença, o esquecimento.... Quase não termino de ler, e as lágrimas turvam até mesmo meu pensamento enquanto comento seu texto, minha sorte é que não é um pedaço de papel.
    "mas as pessoas na sala de jantar são preocupadas em nascer, viver..." - Panis Et Circenses - Caetano Veloso e Gilberto Gil

    Um viva as suas palavras! Hoje cheia de emoção!

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  2. Caro Marciano,
    Primeiro agradeço-lhe a visita a meu blogue Literatura em vida 2. Vim retribuir e gostei do simpático espaço literário. Parabéns.
    Depois de um perído longo de ausência - voltei a morar em meu amado Rio de Janeiro -, tornei a fazer postagens em meus blogues de poemas (http://poemavida.blogspot.com) e contos (http://conto-gotas.blogspot.com).
    Convido-a a ir até lá.
    Eliane F.C.Lima

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  3. Querida Jéssica,
    Desamparo. Essa palavra é carregada de emoções, e reflete bem o espírito da época. De certa forma, poderíamos dizer que em meio à parafernália eletrônica e tecnológica que comanda o nosso tempo, muitas crianças e muitos adolescentes, e também muitos adultos, estão desamparados, e abandonados também, à deriva, como um barco que segue um rio sem horizontes...A indiferença é a terrível criatura que se disfarça em sorrisos banais, e nas frestas do cotidiano passa por nós, sem ao menos perceber que bastaria uma palavra vinda do coração, mas o coração está lá, bem longe...
    Um beijo,
    Marciano Vasques

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  4. Ser cidadão do mundo,palavra chave, não é? É isso, precisamos olhar ao nosso redor, sempre tem algo como um gatinho, um cachorro...sempre podemos fazer algo, até por nosso abandono que muitas vezes não percebemos...

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