sábado, 14 de maio de 2011

O TROVADOR E A GANGORRA

O TROVADOR E A GANGORRA



Mesmo numa noite de trovões tudo seria silêncio e treva dentro dele se não estivesse ocupado a produzir uma trova.
    Talvez se equilibrando entre a trova e a dor, o velho trovador mantinha-se fiel na vã tentativa de medir distâncias, entre as quais a que poderia haver entre o menino que num dia colhia um trevo azul num quintal avulso e no outro ajudava a construir uma trave com caules de eucalipto num campinho da várzea.
       A distância entre aquele menino e ele, que trocara as nódoas matinais nas quais corria livre e solto, pela fumaça do cachimbo e tentava terminar a sua trova, não passava de uma ilusão.
     De um modo geral, as ilusões são benéficas para a alma, mas não podem conduzir uma vida. Um poeta se fez mirando estrelas além dos varais, mas também as bolhas de arco-íris na espuma do anil do tanque, e alçando o seu olhar para os sulcos da face e o suor da lavadeira.
Ilusões sobrevivem em vidas sofridas durante anos, como a da mulher de alma carvoeira que diariamente colocava o copo com água sobre o rádio após estender as roupas nos varais e à noite em talco e brinco enquanto esperava o seu ferroviário e desenhava uma casa com vários cômodos numa folha de papel de pão.
         Há um mistério profundo na atitude da trova.
        A sua lapidação, que é a mesma da poesia e do conto ou de qualquer forma de literatura, inclusive a infantil, que pode ser rica de ternura como a de Andersen, constitui-se num mistério indecifrável que permeia a relação do homem com as coisas que passam por ele.
      Coisas concretas, vida feita de terra, graxa, verdes, fomes, angústias e festas.
      Coisas que antes de serem transformadas em palavras, são formas de vidas no insondável palco do artista.
      A atitude da trova não é abstrata e o trabalho dele, generoso e genuíno em si, é de doação que mais se aproximaria do materno, inclusive em muitos casos pela incapacidade auditiva diante do tilintar das moedas.
Pode o seu trabalho também ser comparável ao da fundição de um metal ou ao do ourives.
O trovador exige para si a atenção de todos e a mais solitária das criaturas é para ele às vezes um bêbado a vomitar luzes, ou um varredor de calçadas a zelar por elas.
O trovador sobre quem eu necessito falar viveu em Santos, a bela cidade das praias maltratadas, em momentos que desprezam o sentido original dos calendários.
Esteve, por exemplo, na noite em que um avô balançava a netinha num dos balanços construídos pela Prefeitura na areia das praias santistas, enquanto a mãe observava de longe a brincadeira feliz dos dois.
O vai e vem da gangorra era a metáfora mais perfeita da vida do trovador, que disfarçadamente observava a cena.
A criança pedindo para balançar cada vez mais alto e o avô atendendo.
A menina repleta da necessidade natural de viver intensamente, porém sonolenta caiu na areia e a mãe no desespero.
A queda de ambas cria um elo indissolúvel que ninguém, por mais sabedoria que tenha adquirido ao longo da vida alcançar a dimensão poderia.
O mais profundo pranto que ele poderia testemunhar talvez somente um poema como “Lamento da Mãe Órfã” poderia em forma de palavras traduzir conseguir.
A dor contida no repentino choro meia hora depois numa pizzaria santista calou a todos, principalmente ao trovador, cuja presença era ignorada.
O pranto foi justificado pelo susto, visto que afinal do seu ângulo a visão da mãe interpretou a criança quebrando o pescoço, embora esta tenha se levantado em seguida da areia e pedido mais balançar.
Quem poderia avaliar com exatidão o que mãe sente pelo filho?
Santos nem sequer poderia supor um desespero assim numa noite de carnaval, muito menos que ele, que já foi visto sentado em silêncio num picadeiro a esperar pelas luzes acesas, estivesse lá, fantasiado de arlequim, com seus losangos coloridos. Próximo daquelas pessoas, a trovejar ao luar santista.
Antes que uma trova sua possa vir a querer sintetizar a dor da mulher diante da possibilidade de perder o que lhe é mais precioso, é preciso que se diga que o modo filosófico de ser da mãe ignora a advertência de Guimarães Rosa, que ensinou que: “Tropeçar também ajuda a caminhar...”. Pelo menos em se tratando do filho, para ela não vale tal ensinamento.
O filho tem que aprender a andar sem tropeçar, sem tombos e sem quedas.

MARCIANO VASQUES


Um comentário:

  1. Amor de mãe é superior, vai além dos tombos...formas de vida insodável ao trovador que vê arco-íris em espuma de anil...
    Imagino a maravilha de ser observado ao longe pelo trovador...lindo mesmo!
    Luz
    Ana

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