quinta-feira, 5 de julho de 2012

O TEMPO QUE O TEMPO É

—O tempo vai mudar, Rospo.
—Para onde ele vai, Sapabela?
—Ele quem?
—O tempo, onde ele vai morar?
—Qualquer pergunta sobre o tempo deve ser feita ao próprio tempo, se você tiver tempo para isso, claro. Mas adorei a sua brincadeira, Rospo. Acontece que o tempo, veja só, vai mudar, vamos viver um tempo de esplendor.
—Jura, Sapabela?
—Nunca hei de jurar, meu amigo.
—Verdade, perdão, amiga. Mas está acontecendo algo agora.
—O que é, Rospo?
—Uma espécie de formigamento na alma. Uma coisa estranha, que de vez em quando me ocorre.
—Já sei o que é.
—Repentinamente começo a pensar em amores circenses, em espantalhos ao vento, folhas voando ao léu, ciganos apaixonados, luares e mormaços, estrelas cativando janelas... riscos de peixes dourados no ar azulejado de uma tarde de capinzal...
—Sabe o que é isso, Rospo? É a Poesia... Quando ela começa o seu chamamento, não tem jeito...
—Alguém consegue recusar a poesia, Sapabela?
—Tantos sapos, milhares, milhões, é triste, Rospo. É só pensar nos trens que transportam os operários, nas fumaças, nas chaminés, nas maquinarias...
—A Poesia está em todos os lugares, Sapabela.
—Sai disso. O problema é a falta de atenção para com ela, a ausência de doçura, que se agiganta no cotidiano dos explorados...
—Sapabela, você  me comove. Muitos buscam profissionais, especialistas, para tratar de algum problema que na verdade nada mais é do que um sintoma da vida incompleta...
—Sei o que você está dizendo, Rospo. E uma vida completa começa onde? Em que ponto?
—Suponho que deva começar no ponto do chamamento. Isso sempre requer uma pausa, um momento voltado para si, um mergulho, um passeio no interior de si mesmo.
—Rospo, como você se sente quando surge esse "formigamento"?
—Sinto-me feliz, com vontade até de seguir o tempo.
—Seguir o tempo?
—É, como ele vai mudar, quero ver até onde ele irá, ou onde irá morar.
—Rospo, você tem espaço reservado para um inquilino dentro de você?
—Tenho sim.
—Pronto, pois então faça com que o tempo more em você.
—Claro, Sapabela! Desde que a sua palavra seja a fiadora.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 790
Marciano Vasques

Um comentário:

  1. e a gente mora no tempo sem saber. muda com ele, foge com ele. e sempre volta.

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