sexta-feira, 3 de maio de 2013

A LUNETA E A MULETA

—Sapabela!
—Rospo! Que saudades!

—Maravilha encontrá-la numa noite de tão linda sexta!
—Rospo, estou uma colcha de retalhos coloridos de conversas... Como se tira o atraso...
—Eu mostro!
—Rospo! Contenha-se! Eu ia dizer, atraso de conversa.
—E eu mostro mesmo. É conversando. Desfiando a conversa, enlaçando a conversa num varal de mil quereres, ouvires e falares.
—Rospo, veja as estrelas... Nem precisamos de luneta.
—Muitos sapos confundem luneta com muleta.
—Rospo, pare! Você falou isso só pra rimar. Luneta com muleta nada tem a ver. Muleta vem de mula, no sentido da vagarosidade.  Você  precisa da muleta para prosseguir ou para se apoiar, e luneta vem de luna, lua, entendeu? Muleta apoia você. Você anda de muleta se for preciso, mas com a luneta você pode ver longe, até pode aproximar as estrelas...
—Você só não aproxima as estrelas do mundo artístico e do literário...
—O que disse?
—Nem disse, meu bem. Foi apenas uma garatuja...
—Pareceu mais um iceberg.
—Você é demais, querida.
—Sapabela, né, meu! Mas, prossiga com a história. Adoro digressões.
—E eu metalinguagem. Vamos lá:
—!
—!
—Fale, Rospo!, por que assim calado está me olhando?
—Só contemplando...
—Tá. Mas, continue.
—Pois bem: na vida real muitos sapos inventam desculpas para não realizarem aquilo que precisa ser feito. Ou seja, utilizam uma muleta. Por causa de alguma "desculpa" ou algum impedimento que na maioria das vezes até poderia ser contornado o sapo não realiza o que deveria ser feito e depois fica nadando no verso da música...
—Que verso?
—"Na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir"
—Chico! Como faz bem!
—Verdade! Como falei em realizar, lembre-se de que aquilo que se realiza é realeza na vida, por mais simples que possa ser...
—Simplicidade de lápis de cor, até. Mas, e a luneta? O que tem uma coisa a ver com a outra? Já entendi que o sapo se apoia numa desculpa esfarrapada...
—Às vezes nem esfarrapada. Ao contrário, uma desculpa muito bem vestida, luxuosa, elaboradíssima. O importante é ele ter um pseudo argumento para justificar o não feito.
—Pseudo?
—É. Como sabe, argumento é plataforma de lançamento de luz, argumentar é lançar luz, expelir o brilho. De modo mais acertado, argumentar é projetar brilho. O pseudo é o argumento arquitetado para justificar através de uma muleta que nada foi feito.
—Tudo bem, meu lindo, mas, e a luneta?
—A luneta, com ela você pode até ver as estrelas mais distantes...
—Sim?
—E quase sempre aquele que justifica o seu não - fazer utiliza a muleta enquanto despreza a luneta, que guarda num canto de descasos... Sempre tem um recanto para o acúmulo de descasos. Recanto não é, no caso, um canto novamente entoado, mas um requentado disparate do abandono de algo precioso... Um recatado não ser. Um desbotamento na vida pela anulação da força motriz do querer.
—Esse tal de descaso... aparece sempre, não é? Costuma reinar...
—Muitas vezes o sapo casa e o descaso logo passa a fazer parte do seu casamento...
—Caso haja descaso melhor um caso... Ou seja, aja!
—Sapabela!, deixe-me continuar...
—Quando ouço logo me alçar quero.
—Pois bem, querida. Mas é isso: o sujeito tem uma luneta em suas mãos, mas, por acomodamento não a utiliza, e como remédio para essa paralisia nada como uma muleta para justificar o que era para ter sido mas não foi.
—Parece complexo, Rospo!
—Só parece, mas estamos na sexta-feira. Que tal? Eu a convido para ...
—Aceito!
—Eu ia convidá-la para um licor de anis...
—Demorou!
—Yupiiii!

ROSPO 2013 — 868

Marciano Vasques


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