segunda-feira, 22 de março de 2010

O BLOGUEIRO - 15

ARGUMENTO: MARCIANO VASQUES
ARTE: DANILO MARQUES

HEMATOMAS DA ALMA

 HEMATOMAS DA ALMA      

É possível que você não suporte mais uma traição, mas a tenha que engolir em nome do cotidiano, da sobrevivência, de algum relacionamento; talvez algo em que se agarrar, esperança virando fumaça, se dissolvendo no ar, se esfarelando entre os dedos, astros morrendo numa insondável  noite. É possível que sofra calado, e perca a pureza anterior, que olhe os amigos com desconfiança, e encontre, ao descer os degraus, rastejando - se em agonia, a sua fé no espírito humano. 

É possível que siga em frente porque afinal é a única alternativa, e talvez aprenda a trair, a compreender o jogo, e se veja de repente no meio de uma arena, numa disputa, num campeonato cujo troféu é a sua derrota.

         Talvez tente preservar as últimas gotas do seu ser, proteger a sua essência das armadilhas da rotina traiçoeira, erguer uma ponte de concreto sobre o brejo da inveja, ser autêntico acima de todos os custos, manter-se fiel ao seu inegociável desejo, ao seu invendável querer, mas em seu coração as sequelas são incicatrizáveis, e acima de tudo, o que lhe remói por dentro são os hematomas da alma, machucados, palavras que o enganaram, falsos sorrisos, coisas pelas quais nunca esteve preparado.
         Pode ser que nem haja uma só testemunha do seu gemido, e a sonoridade do seu grito se desfaça no véu do esquecimento.
         E no salão das vaidades, você passe como um vulto que não ousa se abandonar, que não ousa suportar a pequenez dos relacionamentos infrutíferos.
         Tudo é possível, até mesmo resistir, e o enfrentamento na imensa batalha clame por uma força sobre - humana, pois sempre é mais fácil ceder, sempre.
         Mas você é grande, e oferece o rosto ao vento, enfrenta o dia, ouve as piadas, observa o que se perde, o que se calou.
         As decisões revelam a todo instante a força do seu caráter, do seu coração. Desde as mais simples, embora difíceis na sua simplicidade, como decidir entre comer um alimento rico em fibras ou um doce qualquer. 
Não é fácil, nunca foi, mas sempre valerá a pena varrer os porões da mente, limpá-los, enxaguar com o pranto da sinceridade, olhar para frente, e ver que o caminho é inesgotável,  e ficará algo de você, pelo menos nas  folhas verdes que tocou, mesmo que apenas com o olhar, compartilhando o tempo, passando heroicamente como tudo passará, tudo e todos. 
Algo que permanecerá enquanto existir uma só memória, não morrerá completamente, porque afinal morrer é acabar.
         Ficará, da mesma forma como não é possível um curativo, algo que possa solucionar os hematomas da alma.





MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - TEXTO 5

O CAVALO NÃO DANÇA TANGO


  

O CAVALO NÃO DANÇA TANGO


 
 

Peguei o pedacinho de gente da nossa família e lá fomos. Eu, ela e a vovó.
O circo começava às nove horas da noite. Antes do espetáculo olhamos os camelos e os cavalos malhados, cada um em seu quadrado cercado, com o chão forrado de ração, que não era ração, era feno, que não era feno, era serragem. Um dos cavalos comia seus próprios excrementos. Foi difícil falar sobre isso com ela, tão pequena ainda.

Entramos.
Eu, ela e a vovó em frente ao picadeiro, bem ao centro. O circo não estava lotado, mesmo com a promoção: De terça à sexta, cinco reais. Adultos e crianças.
Acompanhei o seu olhar desde o início. Certamente não estava entendendo nada. Com três anos de idade é difícil se compreender argolas de fogo,  mulheres  voando sob a lona iluminada por focos de luzes, e índios cortando papel com o chicote.
Não entendia, mas o encantamento era visível. O que se passava em sua cabecinha nunca saberemos com exatidão, mas que aquilo ficaria alojado para sempre em algum lugar na sua memória, sabíamos.

 No meio das atrações, eis que no picadeiro um punhado de animais surge: avestruzes, lhamas, emas, jumentos...Os bichos dão voltas no palco e saem. No centro de tudo, um homem com um longo e fino chicote estendido, no ar circulando.
Depois a atração dos tigres asiáticos, dos filhotes de tigres da África, dos camelos.
Não deu pra entender bem a atração dos camelos, pareceu apenas uma exibição dos animais, uma exposição, uma nova forma de zoológico.
Depois os dois palhaços com diálogos e brincadeiras que interessam para crianças maiores. A que estava comigo e a vovó não entendia, por exemplo, uma brincadeira com as camisas de times de futebol, ela nada sabia disso ainda. Mas palhaços encantam os pequenos.
Os trapezistas, os malabaristas, tudo é um grande espetáculo para os seus olhos.


Chega finalmente a atração principal para ela. Os cavalos. Primeiro os malhados, que não fazem nada, ficam apenas dando voltas no picadeiro, pura exibição, mas são os cavalos, e é isso que importa. Ela é louca por cavalos, principalmente depois que assistiu ao "Spirit: o corcel indomável".
 
Após umas  dez voltas eles saem do palco.

 Finalmente o grande momento! O cavalo preto surge no picadeiro, montado por um jovem que segura uma vara.   
  Dá várias voltas. Depois se abaixa, pedindo aplausos, igual havia feito o macaco que andou de bicicleta. Ajoelha-se, ergue as duas patas e para alegria da platéia dança um tango. A arquibancada delira.
A música no ar e o animal dançando.
O cavaleiro falando baixo algumas palavras, e dando uns toques com a bota no corpo do animal.
A coreografia do cavalo é absoluta. Ele acompanha o ritmo com uma agilidade que encanta as crianças.
O cavaleiro bate levemente com a vareta numa parte do corpo do bicho e ele se movimenta, bate noutra parte e ele executa outro tipo de movimento. Sempre ao ritmo da música.
Ao final todos aplaudem. Nós também, para ela aprender. 
O cavalo se ajoelha novamente agradecendo os aplausos. Depois ergue as patas dianteiras, dá algumas voltas e finalmente sai do picadeiro. As luzes se apagam novamente para a troca de atração.

Num dos momentos da apresentação, a vovó me lança um olhar emudecido, quase orvalhado, de uma tristeza infinita. Não há uma palavra sequer para esse olhar, nem precisa. Enquanto no picadeiro o cavalo dançava aos toques da vareta do cavaleiro, a vovó me mostrava que uma criança é para sempre, mas se modifica com o tempo. A que há na vovó mudou.
O espetáculo terminou. Fomos rapidamente para o ponto do ônibus. Olho para trás, para o circo.
Os passos apressados para não perder o ônibus.
Ela, de cavalinho.



MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - TEXTO 4

domingo, 21 de março de 2010

CONVITE X FEMINA ARTE

ANIVERSÁRIO



O BLOG "CAFÉ DE OUTUBRO" COMPLETA
UM ANO 
NO PRÓXIMO DIA 23 DE MARÇO

Parabéns ao Danilo Vasques, o seu fundador.
CASA AZUL DA LITERATURA acompanha as imagens e as crônicas do cotidiano, expostos com refinamento e apuro em CAFÉ DE OUTUBRO.


Imagem do blog "Café de Outubro"


Leia AQUI 



A ONDA CÔNCAVA DO MAR PROFUNDO

A ONDA CÔNCAVA DO MAR PROFUNDO






 

 
Chove e a chuva traz de volta as coisas que não podem morrer. Pensa-se que se dissipa, mas é como a fumaça do trem da minha infância. A locomotiva não está mais sobre os trilhos, mas a fumaça sobre um céu de oliva buscando lilases nunca se foi.

Trago de volta as coisas. Tornou-se um hábito, uma espécie de refúgio, uma proteção da alma. Trago àquela que não ofereceu sua poesia em bandejas de prata, mas em pratinhos de porcelana do XIX. Trago a porcelana, e trago a estampa, e a estampa me leva ao imenso artista que foi o japonês.

A associação do japonês à imagem do científico e da tecnologia está ligada à sobrevivência, é um fenômeno de transformação de culturas que ocorre sob o imperativo da sobrevivência, tem a ver com pós-guerra, com destruição e com reconstrução. São grandiosos na ciência, mas que artistas foram na estampa!

Para onde vão as culturas?
E uma delas, que me é tão superior, e à chuva trago-me de volta. Para onde terá ido? Que distância imensa teria eu que percorrer para penetrar no âmago de tantas confluências coloridas, tantos losangos magníficos, borboletas, flores, formas e cores que nunca teriam fim?

As estampas japonesas desenhando os séculos em cenas de sentires superiores, narrando histórias e momentos. Eis o povo da estampa! Que beirou rios com suas flores amarelas, que sobrevoou azuis com seus pássaros brancos. Para onde terá ido essa cultura que tanto me impressiona?


Por que me vem assim tão desatenta numa chuvosa tarde de setembro?
Para onde irá esse setembro, se me falta a pintura da estampa? Três jovens passeando sob cerejeiras floridas numa tarde de primavera. Foi preciso essa chuva para que eu pudesse compreender o quanto a região onde vivo é importante pelo fato de ter as cerejeiras dos japoneses.

Uma cortesã japonesa vestida com tecidos belos, um carvalho sendo admirado, duas jovens ao luar de outono, uma outra prendendo um poema de amor a uma cerejeira e os magníficos motivos no tecido. Maravilhosos artistas japoneses!

Jovens amantes sentados na esteira de uma varanda contemplando o luar, a impressionante harmonia de uma jovem de sombrinha exalando em cores plenas de delicadeza, rosas à beira-rio, calmo entardecer à beira-rio, como temos que aprender com as estampas japonesas!

Arte milenar, obras-primas de uma cultura inimitável, derivadas de uma arte popular, a pintura japonesa, mãe da impressão.

“Pinturas do mundo que passa”. Nunca esqueci da palavra Ukiyo (mundo que passa), um mundo repleto de significados, mas sobretudo todos convergindo para o conceito budista de tristeza diante do efêmero da natureza, do transitório das coisas que são. "Momento que passa, qual é o seu nome?", tamborila-me os versos de Cecília, pois tudo se amalgama.

Estampas japonesas. Onde as vi pela última vez? Chovia, por acaso? Mas o acaso não passa de colmos da planta trepadeira que vai entrelaçando tudo e atingindo o cume do muro para então se tornar portadora da visão esplendorosa das culturas que retornam com as chuvas.

Ukiyo-e (pinturas do mundo que passa), melancolia budista de um tempo longínquo; conceitos sofrem transformações, o que ousa denominar-se moderno se instala vigorosamente, pois ninguém respeita a força motriz do tempo. E o “mundo que passa” passou a designar um modo particular de vida, uma busca desenfreada dos prazeres, naturalmente transitórios.
Nada sei da gigantesca e indecifrável beleza da cultura oriental que aparentemente se foi, apenas recordo algumas estampas japonesas, tão lindas, que devo ter visto em algum livro empoeirado, em alguma biblioteca.

MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - TEXTO 3


FRAGMENTOS

Brincávamos o dia inteiro entre os verdes eucaliptais. Corríamos nas trilhas ultrapassando nódoas úmidas das manhãs e pisávamos no frescor das folhas que atapetavam os caminhos que inventávamos. Às vezes a mãe participava, quando, por exemplo, transformava o seu avental num enorme embrulho repleto de ameixas amarelas. Às vezes éramos girinos a saltitar fiapos enferrujados de água que escorriam na avermelhada terra da vila. 


Marciano Vasques

PALAVRA FIANDEIRA COM MARÍLIA CHARTUNE


NOVA EDIÇÃO 
DE 
PALAVRA FIANDEIRA


NESTA EDIÇÃO:


MARÍLIA CHARTUNE


LEIA AQUI

ROSA BRANCA EM MUNDO AZUL




Autoria: Zélia Nicolodi. 
Veja em MUNDO AZUL

sexta-feira, 19 de março de 2010

ANAGRAMA ESPECIAL



ARTE TEAR 









ANAGRAMA  ESPECIAL

quinta-feira, 18 de março de 2010

O MENINO E A BALSA

O MENINO E A BALSA
  



 
 
  Coração de menino pulsava acelerado diante das placas “Ferry Boat”, que via à  margem da avenida “Puglisi”, em Guarujá.
O pai desceu a Moji-Bertioga rumo ao litoral, movido por um único motivo: estar na balsa. Atravessar de uma cidade à outra daquele jeito, levando consigo o filho. Queria mostrar ao garoto um dos  mais bonitos lugares do Brasil. Uma inesquecível visão que  criança precisa ter antes de crescer. Iria adquirir para o filho as emoções da travessia de Guarujá para Santos de balsa.

  Que pintor poria na tela, com exatidão, por mais fiel que fosse,  um  entardecer na balsa?

  Amontoado de embarcações:  imensas gaivotas de madeira e ferro construídas pelas mãos humanas. Navios passeando lentamente diante da balsa, transbordando os olhos do menino, trans-bordando em sua alma o mais bonito bordado, o  para sempre, do qual se pronuncia: poesia.
Impossível ficar ao volante esperando a travessia terminar. O pai sai do carro e caminha com o filho até a beira para que apreciem com mais carinho a beleza de um entardecer na balsa, lugar que nenhum outro se atreveria tão bonito  a ser para aqueles olhos.

Ele tira fotos. O pequeno, encantado, olha os navios, os barcos, o mar e as cidades, uma de cada lado. O coração quase salta no pensamento ao pensar para si:

- “É Santos!”

Retornam ao carro. A balsa termina a travessia.

- Pai!

- O que é?

- Faz tempo quero fazer uma pergunta.

- Faça então.

- Quem é Rosema Branca?


O homem, desconcertado, responde:

- É uma história que os  santistas mais antigos contam sobre uma enorme flor azulada muito bonita...

- Ela existe de verdade, pai?

- Claro que não. É apenas uma lenda, eu acho.

- E a menina?

- Que menina?

- A que virou flor.

- Onde ouviu essa história?

- Certa noite perdi o sono e escutei o senhor falar essas coisas para a mãe. Não deu para entender direito...


- É feio ouvir conversa dos outros...

- É que eu perdi o sono e quem perde uma coisa ganha outra.

- Como assim?

- Eu ganhei uma conversa da madrugada...

O pai sorri.


- Sabe, filho, quase ninguém mais fala sobre essa história. Acho até que caiu no esquecimento...

- Mas fale agora pai.

- Não posso!

- Por que?

- Caiu no esquecimento dentro de mim.

Os dois riem muito.

Passaram por todos os canais de Santos e riram sem parar, a mais saborosa risada naquela tarde na baixada paulista.

Por um momento afugentado na maresia, o pai contemplou no rosto do filho  as imagens que fizeram morada em seus olhos de balsa.

MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - Texto 2

quarta-feira, 17 de março de 2010

A ALMA PEREGRINA NA MITOLOGIA E NA LITERATURA

A ALMA PEREGRINA NA MITOLOGIA E NA LITERATURA

 
Gostaria de falar um pouco sobre a presença do feminino na Literatura Infantil, na Mitologia e na Poesia.

A mulher, sempre tão cantada em versos, é protagonista em histórias inesquecíveis. Na mitologia a sua importância é fundamental.

Quando os deuses ficam zangados com Prometeu e decidem punir a humanidade, castigá-la para assim atingirem ao titã que tanto incomodara as divindades com seu amor exagerado pelos humanos a ponto de enganar os deuses, eis que eles decidem o pior castigo que a humanidade poderia receber. Criam a mulher.

Forjada do barro, Pandora, a cheia de dons, recebe das divindades os poderes femininos, entre os quais a astúcia, o dom de seduzir, a malícia e a capacidade de mentir. Segundo Hermes, o mensageiro dos deuses e o último a lhe transmitir os poderes, a fêmea viveria para enganar. Espalharia o amor, mas também a discórdia, a dor e o sofrimento. E essa maldição estaria presente em todas as fêmeas.

Em Orfeu a mulher aparece na figura de uma ninfa de nome Eurídice, que enfeitiça o coração do cantor desde que ele a encontra na floresta.

Eurídice dança para Orfeu e assim o reanima, pois estava arrasado pelo motivo de ter sido expulso de sua própria morada pelo pai, o rei Eagro, que preferia um filho guerreiro e não um com a alma de artista.

Cresce o amor de Orfeu e Eurídice. E então surge um brusco acontecimento que acaba com a felicidade do casal. Ao ser perseguida por Aristeu, que queria possuí-la à força, incapaz que era de conquistar uma mulher, acontece um acidente e ela morre. Sua alma é levada para o mundo subterrâneo para ser propriedade de Hades, o senhor absoluto do inferno, cuja menção do próprio nome atemorizava os gregos, sendo tão terrível que o seu nome passou a ser também o do seu reino.

Então acontece algo extraordinário: pela primeira vez o homem desce ao inferno para buscar a sua amada. Orfeu tenta desesperadamente resgatar a alma de Eurídice, e quando a perde definitivamente, destrói a sua própria vida, abandonando-se na floresta até ser destruído por um grupo de mulheres que queriam o seu amor, e não suportavam a sua fidelidade à eterna amada.

Na Literatura Infantil a sua presença é marcante e ela está a nos ensinar, sendo ora uma menina que vai pela floresta a levar a cestinha de biscoito para a sua vovó e despreza os conselhos da mãe para que não converse com estranhos no caminho. A sua imprudência tornar-se-á caro: o lobo é terrível, o grande lobo. Sempre a espreitar, sempre ameaçando a paz e a tranqüilidade da pequena. Depois a menina é uma adolescente que também vai visitar a vovó, mas, ao encontrar um lenhador na floresta, a menina - com a fita verde no cabelo - vê nela projetada a sombra do lobo e não é mais a mesma. Agora caminha na floresta com um lobo no pensamento, mas antes de adolescer, a menina, com o uso da palavra, venceu o medo do lobo. Tanto repetiu a palavra lobo que esta se transformou em bolo. O seu chapeuzinho não é mais vermelho, agora é amarelo.

Em outra narrativa ela é trancafiada numa torre alta na qual passa a viver isolada do mundo sem contato com o grande lobo. Enclausurada, vive uma boa parte da sua vida no alto da torre e o único amor que conhece é o da bruxa, até que acontece o inevitável: o aparecimento do homem.

As personagens são notáveis e sua função é ora ensinar os humanos, ora educar os homens, sendo que assim cumpre a sua missão primordial, o de educadora. Como Branca a ensinar os anões, e a bruxa, a nos mostrar que a força de alguns sentimentos como o da inveja são medonhos. Há que se ter um cuidado permanente, há que se viver uma vigilância extremada. A inveja é poderosa e só poderá ser combatida com sabedoria, prudência, e produção. Ela é fruto da alma incapaz de produzir, fruto da falta de ocupação, de produtividade. Por isso se inveja, sobretudo a beleza, o amor, tal como Afrodite a invejar Psique, tal como as irmãs a invejarem a pobre gata-borralheira, desprezada e escravizada, que, tal como o patinho feio de Andersen, que sofre uma transformação profunda ao descobrir-se um cisne, transforma-se numa linda e poderosa princesa: a Cinderela. Por puro encantamento do príncipe, eterna utopia edificada na imaginação patriarcal criadora.

Então ora ela é uma fada, ora uma princesa, ora uma bruxa, uma feiticeira, mas sempre estará presente com a sua força a ilustrar e a preencher a nossa infância de magia, de encantamento e de sabedoria.

E é mãe. Na mitologia aparece como Demeter que enlouquece de dor ao perder a filha querida que é raptada por Hades e levada para ser sua esposa no seu reino subterrâneo. Enquanto em outra história a mulher é Penélope a esperar incansavelmente pelo seu eterno amado Ulisses, sempre a tecer um infindável tapete que à noite desmancha e durante o dia tece, enganando assim aos seus pretendente, para quem promete se entregar assim que o tapete esteja terminado, se em dado momento é Penélope a nos mostrar a natureza da mulher tecelã, que nasceu para tecer e vai tecendo e tecendo o mundo e os destinos, as histórias e as vidas, em outro é a esposa de Hades, a bela Perséfone, a mais triste das mulheres. A do mais trágico destino.

Quando a mãe enlouquece de dor quem sofre é a humanidade. Demeter é a personificação da natureza, sendo que ao ter o coração pela perda da filha esmagado, traz para o mundo o inverno, a devastação, a fome e a miséria humana. Só com o retorno de sua querida filha volta a sorrir e a natureza floresce. O amor da mãe pela filha salva a humanidade.

Então surge a Cecília Meireles com a sua poesia e escreve o poema mais sentido, mais dolorido, que é o “Lamento da Mãe Órfã”, pois para ela, quando a mãe perde o filho, é ela que fica órfã.

E da Poesia vamos à Literatura: inicialmente estaremos diante da primeira aparição da mulher, valorizada não apenas pelos seus atributos, mas sim pela sua inteligência, pela sabedoria, pelo uso da palavra. Pela primeira vez ela aparece assim na Literatura e salva as mulheres e a humanidade. Eis um dos grandes legados do belo povo árabe que tantas contribuições maravilhosas trouxeram para a humanidade. Sherazade, a contadora de histórias. Ao contar histórias nas mil e uma noites, ela salva a sua própria vida e inaugura o grande patrimônio da contadora de histórias.

Uma delas salvou o menino José Lins de Rego, que era doente e foi curado pelo hábito de ouvir as histórias da velha Totônia, a negra que percorria os engenhos para contar histórias para as crianças.

Depois vamos encontrar uma mulher que levou para as paginas várias mulheres, inesquecíveis, fortes e marcantes. Clarice Lispector, que um dia , numa feira nordestina num bairro carioca, ao sentir o coração apertado pela turquesa da saudade imensa de Recife onde vivera a sua maravilhosa infância, e de onde jamais deveria ter saído, cria mentalmente os diálogos de sua “Macabéia”, personagem marcante da escritora, que homenageia uma governanta comovente que chorava com ela a morte de uma de suas galinhas.

As suas personagens femininas revelam-nos o estado de alienação do individuo diante da vida não vivida. A vida sufocante do dia a dia, a anulação gradual da mulher diante do cotidiano do lar, onde é muitas vezes oprimida, às vezes sutilmente, às vezes escancaradamente, e em casos extremos chega a ser espancada e muitas vezes sendo a principal vítima de conceitos machistas e perigosos, como, por exemplo, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Clarice consciente de que a condição social deixa a pessoa arrancada de sua própria vida. As personagens de Clarice estão empenhadas e comprometidas com a busca para romper com os grilhões do falso viver, da vida sem autenticidade vivida no espaço em que se chama lar. Ela, a vitima do “Psiu!”. A que caminha pela rua e ouve diversos “Psiu!”. Na calçada, quando vai ao cinema, ao parque, ao supermercado. E em casa ouve o “Psiu!” da opressão familiar, sobretudo do homem. É o “Psiu!”, ordenando a ela que não se expresse, que se cale, que se mantenha em silêncio.

E então a sua valoração vem através dos presentes que costuma receber nas datas comemorativas. O seu valor da mulher está no presente. A panela de pressão que ganha de presente é a valoração da cozinheira, e assim por diante.

Ela que tanto enriquece a nossa infância, seja a infância da criança nos maravilhosos contos de fada, seja a infância da humanidade com a Mitologia, seja na literatura, sempre a nos ensinar, seja como uma guerreira a participar da edificação de uma história real, a nossa Maria Bonita é oprimida no lar, que muitas vezes reproduz a tirania de uma sociedade, que a quer bela, cada vez mais. Eis a vontade patriarcal do capitalismo. Transformá-la na eterna Pandora, a que vive para seduzir. Estranha mulher esta que tanto incomoda.

E assim nos despedimos. Eu a lembrar do verso de uma poetisa chamada Cristina Rosseti:

“Ninguém nunca amou a minha alma peregrina”


MARCIANO VASQUES
CASA AZUL DE PALAVRAS - Texto 1

terça-feira, 16 de março de 2010

O SAPO E A EDUCAÇÃO DA POESIA

- O professor tem que ter a alma da poesia.
- Está maluco, Rospo? A Educação está triste. Muita falta de respeito de todos os lados. Um sufoco dar aula! E o nosso professor, aqui no brejo, cada vez mais desvalorizado.
- Por isso mesmo.
- Ora, Rospo. "Alma de poesia". Parece discurso de algum escritor, desses que vivem realizando palestras...Ponha o sujeito dentro da escola, na sala de aula, diante da realidade. Poesia, poesia. O professor tem mesmo é que lutar pelos seus direitos...
- Isso mesmo!
- Se concorda comigo, como vem falar em alma de poesia?
- Uma coisa não invalida a outra. Não se anulam.
- Explique.
- O professor deve sim lutar pelos seus direitos, pois é um trabalhador, um profissional e precisa ser valorizado, ter os seus direitos garantidos, ser respeitado, mas ele é o ser da cortesia, não deve perder essa condição...
- Que condição, Rospo?
- A delicadeza, a poesia, a atenção, o zelo, a gentileza, a doçura.
- Doçura? O sujeito é massacrado diariamente.
- Ora, Sapa, adoro as suas provocações, mas bem sabe, tanto quanto eu, que tudo isso que falei, incluindo a doçura, não significa, em hipótese alguma, amolecer em suas reivindicações, em sua luta....
- Está certo, mestre, está certo. Ser firme, corajoso e persistente. Porém jamais abandonar a sua condição de "Ser da poesia".
- Claro, não dá para pensar em educar uma criança sem uma educação poética. Isso é trunfo do professor, é o seu privilégio, isso que o diferencia, entende?

MARCIANO VASQUES


Histórias do Rospo 2010 - 46

domingo, 14 de março de 2010

O BLOGUEIRO 14



O BLOGUEIRO 14
Argumento: Marciano Vasques 
Arte: Danilo Marques

PSIQUÊ



PSIQUÊ
“De que me adianta a beleza? De que adianta ser considerada a mais bela das princesas? De que adianta o rosto que miro no espelho, se durmo sozinha...”
“De que adianta, se o verde dos meus olhos passará, como passam os pastos verdejantes que ilustram a bela manhã ainda orvalhada de sereno...”
“De que adianta esta pele alva, essa expressão viva a latejar em minha face, como reflexo da alma preenchida pelo desejo de felicidade?”
“De que adianta esse corpo belo e sinuoso, esse joelho contemplado pela perfeição, esses braços claros e clamorosos de abraços, esses seios ricos de vida, visão exuberante, signo da vontade dos deuses, de que adiantam esses cabelos negros, nos quais reflete-se a luz azulada do anoitecer, de que adianta tudo isso, se durmo sozinha...”
“De que adianta a beleza, se ela significa solidão, se o que eu mais quero é justamente o que mais necessito, o calor do companheirismo, a delicadeza do amante, o desejo sincero do homem, as plangentes confissões do amor...”
E pensando essas coisas, Psiquê se deita sobre o seu travesseiro de macela, e se envolve com as rosas que a circundam, adormece, e como sempre, abraçada à solidão sonha com lábios quentes e vermelhos a lhe tocar timidamente a face rosada, sonha com as mãos masculinas passeando em seu corpo suave, sonha com suspiro de namorado, com os gemidos de amor, com as palavras de afeto.
E o vento da madrugada toca suavemente o seu rosto adormecido, enquanto os archotes são substituídos pela Lua, a mais fiel testemunha das confissões perdidas...
Psiquê, de todas as princesas, a mais bela, incomparável beleza, que desafia o encanto das deusas.
No entanto, continuava solitária, contemplada pelos homens, dormia solitária, pois nenhum homem dela se aproximava, nenhum se declarava, nenhum com ela queria se casar ou pelo menos, manifestava essa vontade. A sua beleza era uma barreira, um muro alto, de distância infinita, que impedia que ela fosse cortejada, que ela tivesse um companheiro.
A sua beleza era transformada pelos olhos masculinos em beleza de uma deusa, mas Psiquê não é uma deusa! É humana, sente como humana, É uma mulher.
Uma princesa, certamente, rodeada de confortos, de uma fonte azulada onde molha o seu rosto a cada manhã, de ramos de rosas entrelaçados nas paredes de seu quarto enluarado. Um palácio onde ela vive confortavelmente, tratada como a princesa que realmente é, admirada pelos jovens do reino e pelos príncipes viajantes que em seu lar param para descansar.
Mas, acima de ser uma princesa, é uma mulher.
Na ausência de confissões de amor, Psiquê vê se dissolvendo a cada manhã pelas escadas solitárias do palácio, os sonhos de felicidade, e nos ciprestes observa a sua solidão tomando forma, e no lago azul da ternura aonde vai freqüentemente renovar a sua vida e contemplar o reflexo do sol, vê refletir-se também o desespero de ser bela.
“Os homens têm receio de pedi-la em casamento, por pensar que você é uma deusa!” – diz, apreensivamente, o pai, solidário da tristeza da filha querida. - “Eles até estão edificando um templo para a sua adoração!”
“Que tolos são os homens!”- suspira a bela jovem.
Pai sempre se preocupa. O destino da sua filha o atemoriza.Vê a tragédia que se avizinha, sofre pela sua solidão.
Um templo erguido para a sua beleza. Isso pode trazer muito sofrimento, pois despertará a fúria da deusa Afrodite, a deusa do amor e da beleza, cujos templos de adoração estão sempre repletos de jovens, a maioria com o desejo de casamento no coração. Afrodite não perdoará. Nenhum deus aceitaria isso, um simples mortal ser adorado, um templo ser erguido para um mortal, isso é uma afronta, um desafio, uma estupidez.
O pai precisa salvar a filha...
Olha a cada manhã a jovem caminhando sozinha entre os pilares do palácio e toma uma decisão: decide consultar um oráculo.
No Olimpo, Afrodite furiosa, está dominada pelo ciúme.A deusa do amor e da beleza, sofre com o ódio que se instala em seu coração e com a feiúra do despeito. Para ela é insuportável a idéia de que um ser humano esteja sendo adorado, de que homens estejam erguendo templos de adoração para uma jovem humana.
“Bem que havia reparado que os meus templos estão pouco a pouco se esvaziando...”
Convicta da ousadia de Psiquê, e sem averiguar a inocência da jovem, que afinal não tem culpa da própria beleza, Afrodite resolve acabar com a farsa, pois compreende que um templo de adoração para um simples mortal não passa disso. Toma uma decisão e chama o seu filho, Eros, o deus do amor.
A linda deusa, vestida de branco, cabelos esvoaçantes, lábios vermelhos, olhos azuis como a safira, como o céu que entardece, como a serenidade do lago, pede a Eros que fleche Psiquê.
“Quero que você fleche uma mortal indolente, atrevida, que me desafia com um templo de adoração, quero que você a fleche e que o néctar de sua flecha se transforme num veneno e faça com que ela se apaixone pela criatura mais horrenda que existir”.
“A serpente do vale nefasto?” – indaga, perplexo com o descontrole emocional da mãe, cuja fúria ele bem conhecia, por tantas vezes que a vira transformada num vendaval arrasador.
“Sim! Se não houver outra mais horrível!”
E assim o jovem deus, com suas flechas prateadas, e as asas lilases, parte em busca da triste missão.
Não está satisfeito, ao contrário, está bastante aborrecido, pois se acostumara a injetar o amor no coração dos humanos com o néctar das suas flechas prateadas e agora, carrega consigo uma flecha negra. Mas não fora educado para contrariar a mãe.
A mancha lilás que sobrevoava a cidade era Eros, que cautelosamente se aproximou do palácio de Psiquê.
Primeiro a rodeou, observando-a, escondido atrás dos pilares. Durante todo um entardecer admirou a jovem, que com seu belo vestido dourado e o manto vermelho, passeava sobre as pedras do palácio, ao redor dos jardins.
Como que flechado pelo néctar enfeitiçado das suas próprias flechas, Eros se apaixona pela bela visão da sua vítima, e embaraçado diante da ordem da mãe, começa a questionar a sua própria atitude. Finalmente, serenamente decide que modificará a sua missão e desobedecerá a própria mãe, enganando assim a deusa do amor e da beleza.
Ao ver o pai da moça se aproximar, procura se ocultar atrás da pilastra, tomando o cuidado para que não vejam as suas asas lilases, e assim, cuidadosamente, ouve a conversa entre eles.
- “Filha, estou severamente preocupado com o seu destino. O que terão os deuses reservado para você? Tomei uma decisão. Vou consultar um oráculo”.
Eros, ao ouvir a conversa, teve uma idéia que o aproximava demasiado dos humanos. Como era amigo do oráculo, decidiu procurá-lo antes do pai de Psiquê.
Ao propor que o adivinho mentisse, teve uma surpresa inesperada:
- Eu não posso fazer isso. Um oráculo não pode mentir, por outro lado, não posso contrariar o filho de Afrodite. Não é justo, o que você me pede é muito difícil.
- Mas é por amor...
- Sim, eu sei. No amor vale tudo. Mas, se algum mortal souber disso, se algum humano desconfiar que o oráculo mentiu..., o que você está fazendo é muito arriscado. Nunca ninguém pediu uma coisa dessas...
Porém, o persistente Eros acabou sendo convincente e em nome da amizade o adivinho consentiu em participar de uma farsa. Estava decidido: mentiria para o pai da jovem. Além do mais, a causa era justa. O amor certamente move os mais intransponíveis dos obstáculos e a sua reputação continuaria íntegra, ninguém ficaria sabendo que, uma vez na vida, o oráculo mentiu.
E assim foi feito.
Ao ser consultado pelo pai de Psiquê, o oráculo profetizou algo atemorizante que tiraria dali em diante a paz do coração do homem.
Psiquê deveria ser levada ao tenebroso penhasco da Solidão. Lá deveria ser abandonada, pois a mais terrível das criaturas iria desposá-la.
O pai entristeceu. Sua alma sentiu-se atirada num precipício. Sua filha não merecia esse destino! Pela primeira vez, o bondoso rei questionou a justiça dos deuses: como é possível que uma criatura bela e doce pudesse ser atormentada por um destino tão atroz?
Mas, acostumado a obedecer aos desígnios divinos, comunicou o fato à sua amada filha. O pranto e a dor invadiram o coração de Psiquê.
Suas irmãs também choraram com a sorte da princesa. Todos, inconformados com a vontade dos deuses, entraram em luto e começaram a preparar a despedida de Psiquê.
No dia anunciado pelo Oráculo, a jovem foi deixada no penhasco pelos parentes.
Com lágrimas nos olhos, o pai e as irmãs abandonaram Psiquê ao destino dos deuses. Deitada sobre as rochas do penhasco, ficou a jovem com suas vestes brancas aguardando o tenebroso anoitecer.
Veio o vendaval, veio o frio, e permaneceu Psiquê no penhasco aguardando a chegada da maligna serpente.
Vestida de noiva, Psiquê começou a chorar e a lamentar a sua sorte, tanto gemeu, tanto chorou que, vencida pelo cansaço, acabou adormecendo.
Zéfiro se aproximou e a envolveu em seus braços. Psiquê foi levada para um lugar encantador, semelhante a um paraíso. Quando despertou permaneceu imóvel: estava em um palácio magnífico. Não compreendeu como chegara até ali. A delicadeza de Zéfiro, o deus do vento, o transformou no transporte digno de uma princesa.
O pasmo do seu olhar não se desfez. Estava num lugar maravilhoso, encantador.
Zéfiro voltava para as nuvens e no caminho comunica ao deus do amor que a sua missão estava cumprida.
Psiquê levantou-se e começou a caminhar por aquele belo lugar. Além das flores, das fontes, das frondosas árvores, descobre que está num palácio de cristal. Um lugar irreal? Seria uma alucinação, talvez o efeito da picada da terrível serpente? Teria sido possuída pelo monstro?
Não. Não pode ser. O que os seus olhos viam era verdadeiro. Estava mesmo num paraíso, e diante de si tinha um palácio de cristal, contornado por altos e belos eucaliptos. Mas, porque estava ali? Esse lugar em nada se parecia com a predição do oráculo. Que espécie de monstro habitaria tal lugar? Quem a possuiria num maravilhoso palácio de cristal? A serpente? Começou a rir. Só podia estar vivendo uma loucura.
Mal sabia que, enquanto caminhava, era observada por Eros.
Uma suave voz, vinda dos ventos, invadiu o ambiente e conquistou os ouvidos de Psiquê.
- Venha minha querida. Você tomará um banho de água cristalina, com aroma de ervas. Assim quer o nosso amo.
- Quem é você? Quem é o seu amo? Seria uma serpente horrível?
Sem obter respostas, Psiquê achou melhor obedecer. Ao se despir para o banho logo percebeu que estava sendo tratada como uma deusa. A sua incompreensão aumentou. Mas, são tantos os enigmas da vida...
Eros escondido numa nuvem, encantado observava a sua jovem.
Como nunca a usaria, parte ao meio a flecha negra e a atira longe. Aguarda ansiosamente o anoitecer, para descer ao palácio, onde terá o amor...
A princesa de extraordinária beleza, a única mortal que despertou a ira de Afrodite. Aquela, cuja beleza mortal esvaziara os templos de adoração da deusa da beleza divina, a mulher por quem Eros feriu-se de amor, caminha por um palácio de cristal.
Quando desce o anoitecer, uma voz pede que ela vá se deitar e lhe indica os seus aposentos. Quando chega ao quarto, Psiquê se deita e fecha os olhos, procurando adormecer.
Não tem idéia do que acontecerá com ela, mas tem a impressão de que o que a espera não é uma serpente alada, e o amor que viverá será tão belo quanto o palácio de cristal, para onde foi levada.
O quarto na escuridão. Está quase adormecida quando sente a suavidade tocar em seus cabelos.
- Não se amedronte. Amo-a tanto que jamais a machucaria.- disse a voz mais terna, que ela jamais ouvira.
A portadora da beleza humana cobiçada por um deus, ouve em silêncio e compreende que a voz suave que lhe acaricia os ouvidos, não pode ser de uma serpente maligna.
Mal sabe que ao seu lado está Eros, aquele que tornou o oráculo de Apolo o seu aliado nesta conquista amorosa. Aquele que enganara a própria mãe.
A mulher sente medo, mas o medo é afastado pelas ardentes carícias de Eros.
Entrega-se ao amante velado e assim foi a cada noite.O amor se fez sem que a amada desvendasse o rosto do seu amante. “Ninguém viveu tal felicidade”! - pensa Psiquê, com saudades da sua família.
E todas as noites Eros a visita em sua cama, e ela, cada vez que o ama, toca suavemente suas mãos de princesa nos contornos do rosto do amado e, embora a escuridão não permita que ela o veja, sente que não se trata de uma serpente medonha.
Certa noite, ao tocar no rosto do formoso deus, comenta:
- Eu confio no seu amor, mas eu não sei quem você é. Não poderia ver o seu rosto pelo menos uma vez? Não compreendo porque tanto mistério. Quem é você?
- São tantas perguntas. Peço apenas, por enquanto, que você continue me amando, um dia saberá quem eu sou, mas por enquanto, não é conveniente que me conheça .Mas,você é minha esposa. Continue confiando em mim...
E a princesa adormece confiante, sem saber que, ao ser amada por um deus, com esse amor torna-se definitivamente inatingível por um mortal.
E na escuridão, mesmo com o luar invadindo as frestas do seu quarto, ela jamais vira o rosto do amado. E cada vez que se amavam, se descobria mais apaixonada.
Porém, como sempre, mal o dia clareava e o sol despontava no horizonte das colinas, Eros desaparecia. E os dias começaram a se tornar solitários. Psiquê era feliz, mas durante o dia a solidão trouxe a saudade das irmãs e, embora numa noite o deus do amor tenha lhe prevenido da possibilidade de uma tragédia caso ela reencontrasse os mortais, Psiquê lhe pede um favor:
- Querido, eu confiei tanto em você e agora lhe faço um pedido. O meu coração chora a saudade da minha família. Permita que eu a veja. Por favor, é só isso que lhe peço...
- Você sabe o perigo que isso representa. Uma tristeza profunda poderá se abater sobre nós, é melhor você desistir dessa intenção...
- Mas, se me ama, como pode impedir que eu seja completamente feliz? Se me ama, como pode me negar um favor?
- Sim, eu a amo, mas quero o seu bem, e sei o mal que se aproxima. No entanto, se a sua vontade é irremovível, não sou eu que devo negar-lhe. Embora sabendo do perigo, certamente você terá o meu consentimento, afinal não saberia como dizer não para o amor...
E assim ela foi levada por Zéfiro, o impressionante deus do vento, ao encontro de sua família. Lá chegando, a alegria foi imensa. Psiquê conta ao pai e às irmãs a sua aventura amorosa.Desponta nas irmãs um dos mais comuns dos sentimentos humanos, a inveja.
- Esse príncipe, esse esposo, esse amante, afinal quem é ele? Você nunca viu o seu rosto, como se entrega assim?
- Sei que ele não é um monstro...
- Mas você precisa saber exatamente como ele é...
- Um dia eu saberei...
- Você confia muito no amor. Mas, e se ele a engana? Quem é afinal? Essa história não é convincente... Eu jamais faria amor com um estranho...
- Nem eu...
- Ele não é um estranho. Eu o sinto tão próximo, ele está dentro do meu coração, dentro de mim...
- Mas você precisa ver o seu rosto, pelo menos uma vez. Não se pode amar sem ver a beleza...
E assim os diálogos com as irmãs foram pouco a pouco implantando a dúvida no coração da princesa.
-“Estarão certas? É justo e seguro amar um estranho? Sei que não é o monstro que me aguardava, mas talvez eu deva mesmo ver o seu rosto. No entanto, será que tudo não passa de inveja? Que tormento! Como é difícil tomar decisões...”
Realmente, a jovem apaixonada não dera nenhuma importância aos avisos do amado misterioso e também não consegue decidir entre a suposta inveja das irmãs e a curiosidade de desvendar o rosto do seu amor...
A indecisão costuma implantar a fragilidade, e enfraquecida, Psiquê ouve as palavras das irmãs, que aos seus ouvidos soam carregadas de uma imaginária preocupação. Resolve seguir os conselhos, parte do principio de que a família só iria querer o seu bem.
- Não se assuste Psiquê, mas certamente com a luz do dia ele se transforma na serpente que o oráculo falou .Você deve tomar uma atitude. Só os demônios ousam se ocultar...
- Digam, o que eu devo fazer?
- É simples. Faça amor com ele como em todas as noites, mas assim que ele adormecer, você acende uma vela e a aproxima do seu rosto. Assim que você ver o seu rosto saberá se ele é a criatura monstruosa ou um belo príncipe...
- Sim, farei isso, cuidadosas irmãs, mas eu sempre pensei que a verdadeira beleza estivesse ocultada, que ela morasse dentro do coração...
- Engano seu,Psiquê, a beleza está no rosto, na aparência. Se esse seu amado se esconde na escuridão é porque boa coisa não é. Tome, leve essa vela...
- Obrigada.
Ao retornar, a princesa recebe uma nova advertência do amante, que se mostra aborrecido com a visita à família. Para ele um gesto premonitório, um sinal de que coisas trágicas poderão acontecer. Pede-lhe que tal coisa não se repita. Essa sua preocupação excessiva desperta em Psiquê a curiosidade e a desconfiança.
Na madrugada, após ter se certificado do sono de Eros, aproxima a vela de seu rosto.
Ao ver o belo rosto do jovem deus, estremece.O espanto com a beleza se mescla e se confunde com a felicidade imensa que sente.
“ Eu sabia! O tempo todo eu soube que ele não era um monstro”.
Mas a sua felicidade é bruscamente interrompida com o despertar de Eros.
- O que significa isso, Psiquê?
- Perdoa, meu amado...
- Você não confiou em mim. Vou-me embora. O amor exige confiança.
- Mas eu sempre o amei...
- Você não me amou o suficiente...
- Não seja ingrato, eu me entreguei ao seu amor, sem conhecê-lo.
- Mas não sossegou enquanto não visse o meu rosto. Certamente a beleza está para você em primeiro plano. Certamente a aparência regozija-lhe a alma. Adeus, Psiquê.
Enquanto o amado partia, finalmente o reconhecia como o deus do amor, pelas esculturas que havia visto nas cidades por onde passou.
O filho de Afrodite parte para as nuvens. Nenhum poema poderia traduzir as lágrimas de Psiquê com a medonha solidão que repentinamente se instala em seu coração.
A jovem que um dia atraiu mais gente do que Afrodite, agora chora em seu leito de solidão.
Seu amado, surgido do caos, não mais voltará?
Nada se compara a visão de Afrodite quando ela aparece para um mortal e Psiquê tem esse privilégio. Após meses de andanças, invoca aos prantos o nome da deusa, sem imaginar o quanto esta tentou prejudicá-la.
- Ajude-me, formosa deusa.
- Por sua causa, meu filho me traiu. Como posso ajudá-la?
- Eu imploro! - clama a jovem banhada em lágrimas. O tom plangente das suas palavras sensibiliza a deusa, que afinal sempre sentira ciúme da beleza de Psiquê, porém não o ódio.
- Está bem, vou ajudá-la, mas você terá que cumprir algumas missões.
Quando você necessita de ajuda aceita quaisquer condições. E Psiquê, desesperada, concordou com a deusa.
- Atrás daquele arbusto há um saco repleto de sementes que você deverá separar, uma por uma, até o anoitecer.
- “Mas é impossível!”- pensou.
- Tenho certeza de que você conseguirá, pois nada é impossível para quem desafiou a ira de Afrodite. - disse ironicamente a deusa, como se pudesse ler os seus pensamentos.
Psiquê executa a árdua tarefa com a ajuda das formigas. Ao apresentar-se para a deusa, causa-lhe espanto.
- Como você conseguiu? Era humanamente impossível! Bem, não importa. Você é corajosa.
Dizendo isso, Afrodite apresentou-lhe a segunda tarefa: tosquiar as lãs de ouro de um carneiro.
- Psiquê contou com a ajuda de Zéfiro, que lhe mostrou a solução. Bastava arrecadar os novelos de lãs que ficavam presos nos espinhos dos roseirais, quando os carneiros passavam por entre eles. E assim foi feito.
Mais uma vez, a jovem surpreendeu a deusa, que lhe ofertou um novo desafio, enquanto ordenou –lhe que dormisse diariamente no chão e se alimentasse apenas de pão e água, para que o agreste interferisse na sua beleza e a fraqueza diminuísse a sua determinação.
- Você deverá descer ao inferno e pedir a Perséfone um frasco com a fragrância da sua beleza. Traga-o sem abrir! O que estará aprisionado no frasco é a água da juventude. Eu preciso de um pouco da beleza de Perséfone para me revigorar.
Mas, a exemplo de Eros com o oráculo, Afrodite combinara com Perséfone, a do triste destino, para que ela colocasse, no lugar das essências da sua beleza, outra coisa.
Partiu. Acompanhada por Zéfiro chegou ao inferno. Lá do alto viu o barqueiro, e desceu aos portões. Atormentada pelos demônios, conseguiu chegar até Perséfone, cuja beleza impressionante a perturbou.
Aproximou-se da esposa de Hades, que vestida de vermelho, com os longos cabelos dourados, cor de fogo, e olhos fundos, extremamente solícita, perguntou-lhe o que queria.
Psiquê implorou pelo frasco. A estranha figura, comovida com o sofrimento da jovem, preveniu-a :
- Não abra jamais este frasco. Entregue-o fechado para Afrodite. O seu conteúdo lhe pertence. Seja prudente, menina.
Talvez prudência não combine com vaidade nem com curiosidade, e no caminho as palavras bondosas e o alerta de Perséfone, se dissolveram na memória dos ouvidos de Psiquê.
Abriu o frasco.
Em vez de encontrar a água da juventude, do frasco espalhou-se no ar um mortífero gás, que a envolveu num infinito sono.
Vaidade, unida aos poderosos tentáculos do ciúme, levaram-na para as subterrâneas trevas do sono.
Inconsciente, com o sono da morte, Psiquê despertou a atenção de Eros, que do Olimpo acompanhava todos os passos da amada.
O grande amor desfere nas rochas da mágoa golpes profundos e a rocha dissolvida abriu as portas do coração de Eros, para que entrasse a sensata brisa do companheirismo.
Foi até Psiquê e, ao encontrá-la desfalecida, tocou em seu corpo com uma de suas flechas. A jovem despertou e ao ver o rosto do amado, não conteve o choro da felicidade.
Levou-a ao Olimpo.
Com o consentimento de Zeus, se casaram.
Psiquê tomou o néctar dos deuses, tornando-se imortal.
Quando Zeus lhe oferece a Ambrósia, comenta:
- Seja bem vinda!
Unindo-se a Eros, vive o seu merecido amor por toda a eternidade.
Certa noite, Eros sobe no mais alto dos penhascos e, diante das estrelas, ergue o fruto do seu amor: Volúpia.

 
PSIQUÊ, recontado por Marciano Vasques

 

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