sexta-feira, 2 de abril de 2010

O PASSEIO DOS CAVALHEIROS





 O PASSEIO DOS CAVALHEIROS



Ousadas estrelas aparecem no manto azul da noite de 02 de  de abril. As luzes da cidade – luzes cidadãs - repousam sonolentas sobre a paisagem avistada do viaduto do Chá. 

Poucas almas incomodam a cidade com seus passos apressados que retornam para lugares. Desaparecem engolidas pelos orifícios de concreto do Metrô.
Um estranho círculo de luz surge na profusão instantânea de cores circulares que se desfazem sobre a visão do shopping Light e do Teatro Municipal.

Numa das calçadas do viaduto passeia o solitário vulto despejado pelo círculo.


O homem de sobrancelhas densas e bigode raro olha ternamente para a cidade que não é a mesma. Como faz anualmente, relembra escolas de madeira, cartas que escrevia para crianças distantes e a sua aventura emocionante. Um feixe de luz despenca suavemente e diante dele aparece outro homem. O sujeito se aproxima:

- Como vai? Estava ansioso pelo nosso encontro.

E tem início um fecundo diálogo entre dois cavalheiros, ambos de paletós desatualizados. Falam de tudo. Um discorre sobre a infância pobre, de dificuldade e as aventuras escolares, quando era zombado pelos colegas por causa da sua feiúra e do seu jeito insistentemente tímido e solitário.

O outro fala, consternado, do seu desgosto com a gente grande e da emoção ao ver pela primeira vez os queridos personagens impressos no papel.
Conferem que jamais foram distantes, embora um tenha sido dinamarquês e o outro tenha nascido e crescido na tímida Taubaté, onde em tarde ensolaradas, chuvas anunciadas em mormaços e trovoadas que ralhavam, brincava com brinquedos toscos de chuchu e sabugos ou se empoeirava de emoções na biblioteca do avô.
O de Taubaté reconforta-se com súbita felicidade ao reparar que continua no coração de infinitas crianças, que viajam freqüentemente nas páginas do seu sítio, e se lambuzam com: a aritmética, a gramática, a história das invenções e a história do mundo, e crescem com sábios convencidos e com velhinhas contadoras de histórias. O da Dinamarca, também encharcado de felicidade constata que o seu patinho feio e o seu soldadinho de chumbo continuam falando e levando suas mensagens de perseverança, de persistência e de sabedoria aos milhares de crianças de um mundo sem fronteiras.
Um fiapo lunar de vento desfaz a lágrima disfarçada pelo homem de Taubaté, quando o outro afirma com leveza:
- Mas a sua voz continua! Você continua falando através da sua boneca de pano. Ela é você.

Emília - Personagem de Monteiro Lobato - Reprodução Google.

Um sorriso esboçado sela a concordância, mas a gentileza de amigos assim, reparte imediatamente o presente. E afirma:

- Sim, o senhor, meu caro, é o patinho, e continua com a sua voz a ensinar as crianças de todos os credos, raças e lugares, e idades, que não devemos ter nenhum tipo de preconceito dentro do coração.
O diálogo é interrompido quando o passeio atinge a calçada da Biblioteca de Mario de Andrade, o patrono poeta da cidade. A luz que os acompanhava começa a se dissolver e desaparece lentamente.

Biblioteca Mario de Andrade - Reprodução Google

Com a agonia das luzes eles se vão, prometendo se encontrar no próximo ano. O de Taubaté explica o mistério dos reencontros.
- Sempre que nessa noite do ano, pelo menos uma criança com insônia abre um livro meu, vou tomando forma e na primeira página lida, inicio o meu passeio e enquanto pelo menos uma criança permanecer acordada lendo, estarei caminhando pelas ladeiras e calçadas desta capital.

- O mesmo se dá comigo!- conta o dinamarquês.

Os dois se despedem porque afinal as duas últimas crianças fecharam os seus livros e foram dormir. Talvez uma estivesse lendo O Patinho Feio 
Cisne- Reprodução Google

e a outra, A Menina do Nariz Arrebitado.

  Os cavalheiros se despedem.

Quem tem a felicidade de reparar o círculo de luz e cores se desfazendo em nódoas jamais poderá imaginar o que de fato acontece, ou talvez possa, pois afinal a imaginação pode tudo, e ela não é propriedade apenas das crianças.


 MARCIANO VASQUES

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