— Sapabela, ouça!
— É a cigarra, Rospo, ouço o seu canto...
— Tem certeza?
— Claro, Rospo... Claro...
— Tem muitos sapos que confundem os cantos, o da cigarra com o da sereia...
— Está maluco, Rospo? Isso não acontece. Como pode alguém confundir? Será que não percebem a diferença? O Canto da cigarra não é igual ao da sereia...
— Não precisa fazer escarcéu, Sapabela, mas é engano seu...
— Ora, Rospo...
— É exatamente isso, Sapabela... É preciso ter muito cuidado e diferenciar os cantos...
O canto da cigarra representa o chamamento para a vida, ou seja, para a arte. É o canto do artista, e o artista é aquele que nos suspende do cotidiano das coisas que não se movem... A arte é isso, é nos elevar, nos levar... A cigarra, eu diria, é a voz que nos salva...
— Nossa, Rospo! Mas, e a sereia?
— É o desvio, é o chamamento para o desvio...
— Sempre andei em retidão, Rospo... Nenhum canto de sereia nenhuma irá me desviar... Quem, por acaso, costuma ouvir o canto da sereia?
— Qualquer um estará sujeito, Sapabela, seja um poeta, um escritor, e não precisa necessariamente ser alguém das artes... Qualquer sapo... pode ir para o abismo.
— Estou abismada, Rospo, mas, como podem confundir os dois cantos?
— Para ouvir o canto da cigarra, é preciso o apuro dos ouvidos... É preciso o aprendizado do ouvir, a lapidação do ouvir... Ouvir é algo que se adquire... com o tempo e com muito esforço...
— Ora, Rospo, eu ouço desde que era uma sapinha... Já nasci ouvindo...
— Certo, Sapabela, não estou me referindo ao "ouvir biológico", estou me referindo ao "ouvir" que aceita a arte como protagonista de seu próprio querer...
— Bem, Rospo, eu sou uma sapa que não consegue se adaptar, e por isso necessita da arte, e assim aprimora o próprio ouvido, portanto, o canto da cigarra procura pelo meu ser assim que brota no ar... Dessa forma, não tenho receio de confundir esse canto com o da tal sereia...
— Que seja assim, minha querida amiga.
HISTÓRIAS DO ROSPO 2011 — 483
Marciano Vasques
Leia em CIANO
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