sexta-feira, 3 de junho de 2011

A PALAVRA DA BOCA

— Que me fadem todas as fadas, lá vou eu, num fado valsado...
E assim lá ia a Sapabela, promovendo encontros entre fados e sinas, entre valsas e sinos... quando encontra o seu amigo.
— Rospo!
— Sapabela!
— Estive pensando, Rospo, o que importa é o que o sapo libera pela boca...
— Pode ser um vômito de poesias sob as estrelas... No charco uma força poética procura as raizes dos sonhos...
— Pode ser de fato a palavra... aquela que lavra a manhã... Aquela que acontece...
— Bem sabe, menina, o que acontece é o que se conta e se tece...
— Às vezes o sapo também fica enfezado com o que sai pela boca...

— Entendo, entre os gritos e os suspiros de amor, os plangentes sussurros de saudades, o sapo também xinga, e agride, lança palavras ferozes, e vejo muita zanga se espalhando nos ares... Iras e verbos aflitos... 

— Mas é da sua boca que os quereres se expressam, e os mundos colidem...

— Bem sabemos, minha querida, que só a palavra escrita resiste ao tempo e se torna pra sempre, rasgando séculos e temporais, pois a palavra oral se dissipa num sopro do cotidiano...
— Se eu fosse mais cigana do que sou teria a gana de andar por aí, me espalhar pelo mundo, pois o mundo é mais do que o brejo...
— O mundo é estar em si.... Sapabela... e jamais devemos abandonar a falta que faz um sorriso, um poema, uma voz que diz e canta os lamentos e as festas de um coração, pois afinal nenhum coração pode ser desperdiçado... E em cada vida temos uma réstia de romances que não se findam jamais...
— Nem sempre o sapo edifica com a sua palavra...
— Mas é ela a matéria prima daquilo que virá a se tornar literatura, é ela que fornece o extrato, a seiva, a semente... É a palavra que ara o dia, que diz fúrias, ciúmes e lendas, que chora, que berra, que clama, que resmunga, remói, é ela, a palavra da boca, que um dia a mão irá escrever. Então é apenas aparência e força de expressão dizer que a palavra oral se dissipa no cotidiano... A palavra que fere ou se torna um bálsamo silábico para a alma, jamais se dissipará, e pode acreditar, até uns gravetinhos de fogueira abrigam em si a semeadura dos incêndios desvastadores.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2011 — 600

Marciano Vasques
Leia em CIANO

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