domingo, 13 de novembro de 2011

PROPAROXÍTONA MÁGICA

PROPAROXÍTONA MÁGICA



Acordei pensando numa proparoxítona mágica. Não sei ao certo o que invadiu a minha alma portuguesa nesta manhã. Talvez haja uma palavra que exprima com exatidão, como sempre houve, desde quando surgiam feito terremotos, entre os lilases dos corações das bananeiras e as crinas na lonjura esvoaçando, no vento que roçava meu rosto e agitava as águas.
Com elas, numa chuvosa manhã, alguém me passava a primeira ideia de ternura enquanto riscava o giz, e num domingo adolescente fugiram no mais precioso momento.
Com elas se maltrata também o ser amado, e por descuido, se pode adquirir o hábito.
Enquanto o cego caminhava na biblioteca em profunda felicidade, tocando em cada livro, uma criatura inatingível pelo tato movia-se numa escada tentando assumir a própria forma.
Palavras numa tábua de argila, num palimpsesto, na cantiga da Ribeirinha, surgindo no teclar dos dedos, desafiando tendinites, e se projetando a laser na concretude da cidade, sempre revelaram o que de mais alado há no ser.
Por elas, compreendi que o nome da bondade é Erasmo, e que no século XVII o infinito polia lentes.
Há mais poesia do que se imagina! Difícil notar pela ocupação dos olhos com a leitura do cotidiano. O amor vai tecendo dores e as flores habituais refazem a vida como encantadas trapezistas voando num áspero desbotamento.
O poeta português disse que gostava de “palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio”.
Alguém escreveu que é preciso ver as coisas como o poeta e a criança veem.
A palavra escrita talvez seja a mais profunda forma de generosidade humana. Através desse cuidado humano já fui transportado para os mais distantes e oníricos lugares, e fiquei diante de alguém que pela primeira vez observou com espanto o vento agitando as águas.
Fui levado para um tempo em que “Até um militar não esquecia de sua madrinha de fogueira e se podia ouvir, na rua do Ouvidor, algum deles dizendo:-— Abença, madrinha Raquelzinha!”
Tudo entardecida naquele dia quando na estação rodoviária eu estremecia a primeira palavra escrita da minha vida. Vidas vagavam num trem que jamais do meu pensamento partiu.
A palavra se perdeu dentro de algum vagão da memória, mas lembro que eu sorria. Meu sorriso se espalhou pela ferrovia e sumiu na azulada neblina vespertina.
O homem que segurava a minha mão nunca teve conhecimento do sorriso que perdeu. Nem poderia supor que a partir daquele dia minha vida seria como uma interminável ferrovia ou um rio, como aquele “no qual vive um crocodilo”.
Foram surgindo ao acaso, nos dias de brincadeiras com locomotivas de tijolos, de latas de óleo, até que reparei no primeiro muro com palavras de luta e de sangue. O verbo não se fez a toa.
Guerrilhas e fantasias, num mundo que talvez entristecesse o marinheiro e a moça de neve.
Dormia sonhado e acordava com as chaves do castelo.
Impressionante como eu corria atrás delas! Cada palavra: como elas me provocaram a vida inteira! Quiça pudesse ter tempo para registrar a chegada de cada uma! Até as tão novidadeiras que eu escrevia mais de uma centena de vezes no incrível papel de pão meticulosamente guardado numa gaveta pela mais fascinante das pedagogas que conheci, em minha própria casa.
As águas se agitando ao vento por alguém batizado de “O espirito de Deus!”.
Quem sabe a vida talvez seja mesmo uma proparoxítona mágica. Que costuma aparecer numa estação ferroviária.


MARCIANO VASQUES




Um comentário:

  1. "Dormia sonhando e acordava com as chaves do castelo"Quem sabe a vida possa ser uma proparoxítona mágica...Quem sab?
    Luz!
    Ana

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