domingo, 29 de julho de 2012

A NOITE DOS HIPOCORÍSTICOS






A NOITE DOS HIPOCORÍSTICOS

—Rospo, meu Rospinho, meu querido, meu queridinho...
—Hipocorístico.
—O que é isso?
—Hipocorístico é toda palavra que demonstra carinho, afeto, no âmbito caseiro, na intimidade, nas amizades...
—Gatinho?
—Sim, gatinho, meu ursinho, benzinho...
—Interessante,então, qualquer palavra criada e pronunciada com intenção de carinho no âmbito familiar e no amoroso, é um hipocorístico...
—Isso. Florzinha, mamãezinha, amorzinho, benzinho...titia, Chiquinho, papaizinho, queridinha...
—Tenho uma amiga sapa que está atravessando um problema...
—Isso é bom, quando atravessamos um problema, podemos metaforizar como um rio, e assim aprenderemos a remar o barco chamado solução...
—Às vezes precisa das frestas do sol, que pode ser a voz de uma amiga...
—Correto, mas que problema é esse?
—O sapo dela é muito ciumento, e possessivo... Não é violento, mas é seco, é meio bruto...Tipo pedra bruta...
—E então?
—Então, o quê?
—Ela não é feliz?
—Finge que acredita que é...
—Continue...
—Ele a oprime, até com sutileza... O que ocorre é que quando um parceiro não demonstra confiança ou é muito possessivo, e isso se aplica ao sapo e a sapa também...
—Sim?
—Quando o diálogo começa a rarear, por conta da falta de confiança ou de algum ciúme meio doentio...
—Prossiga, minha sapinha...
—Ciúme, desconfiança, sentimento de posse, controle do outro, sempre gera perda de autonomia, ou privação de liberdade, ou ainda, o que é pior, temor ou insegurança na manifestação da liberdade de expressão.
—Aquela ou aquele que diz “Eu amo você!” não pode ser tolhida ou tolhido em seu sentimento de livre expressão... Amor jamais oprime...Quando oprime é negociata da alma, é sucata do coração... Amor é companheirismo, e companheirismo é confiança... Quando um sapo ou uma sapa não pode exercer o seu inalienável direito de se expressar por que o parceiro ou a parceira exerce o seu “direito de oprimir”, julgando-se dono do outro, proprietário, esquecendo-se de que o outro tem vida, e tem direito a ser feliz, e esse direito precisa vicejar, sem controle, como se fosse um marionete, ou um carro, ou ainda um ser vigiado, quando isso ocorre, isso é o revés do amor, pois a sapa, ou o sapo, ao exercer a sua liberdade de pensamento e exercer de forma pura e autêntica a sua sinceridade, a sua alma, de forma alguma está prejudicando o amor que sente.
—No caso da amiga a questão é de gravidade...
—É?
—Sim, ela navega no tal rio das margens estreitas que a oprime, e não consegue se realizar plenamente como sapa, pois algo a impede, e esse algo é por exemplo, poder se expressar com a palavra que não teme...
—Sei bem o que está dizendo. Tem muitos sapos e sapas que se julgam proprietários mesmo, em nome de um suposto amor, se julgam proprietários até da palavra do outro, exercendo assim a opressão máxima, que é o impedimento de que o outro possa plenamente se manifestar ...Mas por qual motivo o caso dela seria de mais gravidade do que a multidão que padece desse tormento “amoroso”?
—Ela quer ficar grávida. Seu sonho é ter uma sapinha...
—Sei... Ela se sente incomodada com uma suposta opressão que em nome do amor a esmaga como ser, ou a tolhe...
—Isso.
—Mas quer ficar grávida desse sapo... Quer engravidar. Entendi, então temos duas alternativas para que você possa conversar com ela...
—Sim? Sim? Sim?
—Primeiro, poderá demonstrar que compreende o seu desejo de engravidar como uma fuga....
—Fuga?
—Sim, milhares de sapas no mundo fazem isso...
—Nunca pensei que engravidar fosse uma fuga.
—Em casos como a da sua amiga sim... Pode ser mesmo uma fuga.
—Explique, por favor.
—Ora, a sapa é infeliz, e não pode expandir a sua alma, não pode exercitar o seu coração no mais puro amor, e incidir no mundo através da sua plena realização como ser, até mesmo numa Rede Social, onde poderia exercer livremente e democraticamente a sua palavra... Não pode abraçar em si a gestação de um novo tempo onde se sentiria um ser pleno e realizado...
—Sim?
—Não pode se livrar desse jugo de ferro, desse fado, desse sofrimento, dessa opressão... Não pode se expressar livremente, pois é estupidamente vigiada...Como se a quisessem privá-la de sua própria autonomia verbal...
—Sim?
—Não pode lutar contra uma situação que a oprime e amputa o seu direito de escrever o que sente, sem ter receios... Não tem como canalizar, como expressar o seu afeto, a sua generosidade, a sua alma, o seu coração, a sua “paixão de viver”, que deveria se manifestar nas suas palavras de amizade, por exemplo, sem receio de censura ou algo pior...
—E?
—Pelo fato de não poder se libertar e de enfrentar uma provável situação opressiva... nutre o desejo de engravidar, que é uma fuga do subconsciente, uma possibilidade de se “ocupar”, de redirecionar “o afeto que não pode se expressar”, de ser autêntica e completa, e transfere, de forma inconsciente, o problema, e consegue assim uma falsa solução, pois poderá finalmente demonstrar o seu generoso afeto de ser apenas o que é, ou seja, um ser de coração livre, e poderá demonstrar esse afeto para com a futura criança, poderá transferir o seu coração ferido, e realizar-se, supostamente de forma plena, através do amor materno, que nesse caso, é uma fuga, sim. Uma transferência, uma forma inconfessável de se tentar ser feliz. Isso é a maior característica e qualidade do sapo, do humano sapo: se não pode ser feliz de uma forma, transfere essa sua potencialidade inerente, essa sua “capacidade de amar sem temores”, e é isso que ela quer fazer...
—E poderá se doar em amor, poderá exercer o seu amor livremente, sem temor...
—Em muitos casos, terá alguém para amar e que poderá exercer a obediência. Ao amar a futura sapinha terá alguém que deverá transbordar de amor e nesse alguém poderá mandar, durante um bom tempo. Mas, não vamos ser tão duros, não é?
—Rospo, gostei!, aplaudo, mas, e a segunda alternativa?...
—A segunda é você escolher para ela um hipocorístico apropriado, que demonstre o seu carinho, o seu respeito e a sua amizade por ela....
—Que tal... burrinha?
—É, até que é bonitinho.
—Rospo, vamos tomar um sorvete, a noite está enluarada...
—Cadê o luar?
—Inventores de luar, assim são os amigos sinceros...
—Vamos, Sapabela. Já estamos entrando em Agosto... E terminar Julho sem um sorvete...
—Um sorvetinho...
—Está bem, Sapabela, até um sorvete merece um hipocorístico.

HISTÓRIAS DO ROSPO 2012  — 807

Marciano Vasques




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pesquisar neste blog