domingo, 30 de setembro de 2012

NO TEMPO DAS MAL TRAÇADAS


NO TEMPO DAS MAL TRAÇADAS


—Sapabela!
—Rospo! O domingo já está anoitecendo! O que é isso em sua mão?
—Hoje estive a lembrar do tempo das mal traçadas.
—Do que fala, amigo?
—Da carta. Como eu ficava feliz quando recebia uma carta! Até hoje conservo a minha caixa postal.
—Pode dizê-la para mim?
—Claro! Caixa Postal 53125; cep 08201-970; Sampa/SP
—Sente saudades do tempo das “mal traçadas linhas”? Mas hoje recebe uma quantidade expressiva de e-mails diariamente... E dizia que jamais iria abandonar a máquina elétrica...
—Alguns abandonos são apenas materiais...
—Entendi isso não...
—Não seja modesta, amiga. Eu quis dizer que jamais abandonei a máquina elétrica assim como jamais abandonarei a carta...
—Mas confessa que é melhor digitar diante da tela e saber que alguém em Portugal irá receber no mesmo instante a sua mensagem...
—Sim, isso é indiscutível... O que pode ser discutível, numa seresta, numa calçada enluarada, numa bebida gelada seria a suposta quebra da emoção...
—Tem certeza do que diz?...
—Ocorre que algo está acontecendo, Sapabela.
—Diga, meu querido.
—O espírito do sapo, a sua alma, a sua mente, tem um poder extraordinário de adaptação, de adequação... O Ser se reinventa a cada dia, transforma a sua própria forma de sentir para continuar sentido as mesmas emoções...
—Estou quase chegando lá, fale um pouquinho mais.
—O espírito do Ser luta de forma obstinada e persistente para recuperar o terreno perdido...E vai metabolizando as suas transformações no campo dos sentimentos, a metamorfose é sempre um renascimento, um gesto de fênix, uma revitalização de si, uma renovação... E vai e ressurge...
—Ainda precisa falar um pouquinho...
—Veja: ele perdeu a emoção da carta, todavia incansavelmente busca recuperá-la e essa emoção, essa aventura de ser, ressurge no e-mail, diante da tela. Ele volta a se emocionar com as palavras de amor como se estivesse diante do papel da carta. Não está e sabe que não é mesma coisa, mas seu coração pulsa na mesma intensidade diante de uma declaração de amor como outrora... Essa é a sua incrível capacidade de adaptação, pois para ele o que importa é poder amar e se expressar...
—Pelo que está dizendo, o livro de papel seria então substituído pelo livro na tela...
—Não exatamente... Da mesma forma que a carta jamais será substituída, o livro de papel continuará absoluto em sua alma de leitor...
—Como é isso então, Rospo?
—Lá no recanto primordial, no abismo dos abismos, lá no fundo de sua alma... a carta permanece...
—Mas o sapo não recusa o e-mail, por causa da praticidade...
—Sim, e sofre naturalmente o processo de adaptação necessário à sobrevivência do sentir.
—E o livro?
—O sapo de nossa geração ainda não sentiu a praticidade no livro na tela da mesma forma que ocorreu com a carta... Que, embora insubstituível, está sendo trocada pelo e-mail, é apenas uma cumplicidade, uma espécie de acordo... Entretanto, abrir um livro de papel seja no Metrô ou no banco de uma praça ainda é um gesto de felicidade insubstituível...
—Então, tudo é uma questão de felicidade...
—Sapabela, que teia está tecendo? Sim, é isso...
—Então, o e-mail é uma forma de felicidade que pode muito bem substituir a carta?
—Não o e-mail, que aliás, transformou a escrita, a forma de comunicação. Ainda guardo comigo algumas cartas longas, mas no e-mail ninguém escreve mais “longas cartas”...
—Se não é o e-mail, onde está então o eixo, o centro, que poderíamos chamar de felicidade?
—Está na sapa que escreve, ou no sapo... Na sapa que escreve e na sapa que lê... Está dentro de cada um...Essa é a felicidade... Por isso o sapo se adaptou... E aceita a tecnologia para transmitir os seus sentimentos...
—Mas às vezes um sapo pode terminar o namoro pelo e-mail...
—Até por uma mensagem de celular...
—Então, nesse aspecto, a tecnologia não é eficaz... quer dizer, ela secou os sentimentos, embruteceu-os... A tecnologia transformou a forma de sentir...
—Não creio que estejamos falando de tecnologia, Sapabela...
—Não?
—Não. Estamos falando de sapos e sapas...
—Entendi, sapo pode escrever com canivete num caule de árvore, com carvão num muro, ou então num e-mail... Mas o que importa nessa história é que ele busca as formas de expressar o seu amor... Seja com muitas ou poucas palavras... Em mensagens breves também pode se declarar amores longos e imensos...
—Sim, as suas paixões, as suas tempestuosas paixões, e o seus amores, seus amores autênticos, sinceros... e são esses sentimentos que movem o mundo... Ainda é um espetacular mistério um sapo e uma sapa se amarem...
—Rospo, sobre o livro de papel, eu estou com você...
—Sapabela, mas hoje você está um labirinto... Que tal glorificarmos o domingo?
—Viva! Adoro! Aceito!
—Já sei, aceita um licor de anis...
—Yap! Quer que eu diga? A padaria nos espera... Só não vai quem é bobo...

HISTÓRIAS DO ROSPO 2012    — 831
Marciano Vasques

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