segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O JARDIM E A AREIA MOVEDIÇA

—Rospo! Vamos abrir a semana?
—Vamos! Um chocolate com menta, pode ser?
—Uau! Vamos lá. E então, que me diz de novo?
—Uma rara descoberta.

—Rospo, você ainda se emociona com cada descoberta. Qual é o seu tempo?
—É o "Agora"... O único que temos a oportunidade de perder, por qualquer vacilo...
—E sobre o que é essa novidade, meu querido?
—Cada um edifica em si o que quiser... Não há força que impeça um sapo de construir o que quiser em sua alma... A escolha é sempre dele, muito embora não deva ser desprezada a influência da circunstância, que é a força motriz na maioria das vezes. Para não se atrelar às circunstâncias, precisa muito treinamento interior, muita força de vontade. Eis uma espetacular peleja de forças: a força da circunstância e a força de vontade. Quem tem o inviolável valor do querer em si já tem o mais valioso tesouro para enfrentar quaisquer procelas.
—Estou gostando, continue.
—Chocolate espumado e quente com menta assim logo em lunes, quem diria. É inspiração aquecida na certa.
—Pare de ser metido, Rospo! Fale segunda-feira, mesmo.
—Faça-me sempre rir e já ganhou um aliado.
—A qual riso se refere?
—Ao riso espontâneo diante da alegria cultivada e cativante... Não o riso debochado e frágil de piadas  improdutivas... Se bem que é sempre bom lembrar que nenhuma piada é vã. Na melhor das hipóteses, sempre algum grãozinho de pré - conceitos ela pode lançar ao ar...
—Pois bem, mas retome o papo sobre cada um edificar em si o que quiser...
—Na maioria das vezes o melhor é o mais difícil. Veja só: Um sapo tem mais facilidade de construir um charco de areia movediça em si.,. A preguiça já é o grande arquiteto nessa edificação. E também a fartura de desavenças, de pré-conceitos, o apego pelas mentiras atrativas, o afastamento de seus valores mais intrínsecos, o descaso para com os sentimentos mais fecundos... É muito fácil mesmo construir um alagado campo de areia movediça em si... O mais difícil mesmo é construir um jardim. O maior desacato de um sapo é olvidar de si.
—Um jardim é mais difícil, Rospo?
—Naturalmente, querida. Um jardim requer esforço, escolhas, atitudes... Separar ervas daninhas de flores dá um trabalho imenso!... Compreender a necessidade dos espinhos para proteger as rosas é uma fascinante aventura do espírito anfíbio... Construir um jardim exige requinte, retoque, e para construir areia movediça bastam algumas ressacas, alguns desaforos, basta ausentar-se do respeito, basta esquivar-se do imperativo ético, basta... Você sabe, viver uma vida sem requinte é viver uma vida requentada. Engana-se quem pensa que o requinte esteja apenas nos bens materiais e no luxo da Riqueza física... O requinte está no recanto de cada um.
—Sei, e porque um sapo iria preferir construir em si areia movediça? Não seria para ele mais prazeroso um jardim?
—Você que pensa, minha nega.
—Adorei esse "Minha Nega", é tão bonito isso!, está na singeleza da alma do povo...
—Pois é, Sapabela. O que acontece, aqui, em nossa conversa, é que a escolha entre o jardim e a areia movediça é a mais importante na vida de um sapo... Todos podem erguer seus próprios porões... Seus poços, suas fossas... Mas, jardim? Ora, pensa que é fácil alguém decidir por ele?

—Rospo, você me conheceu numa floricultura. Fez aquele escarcéu, lembra? Sempre foi meio estabanado, não é? Eu costumo me esquecer por aí, mas o que mais admiro em você é sua alma de jardineiro. E com você aprendi que para alma virar lama não basta apenas um anagrama...


—Uma coisa vou dizer, querida amiga. Jamais descuide de seu jardim...

—E quando alguém está afundando em sua própria areia movediça, o que devemos fazer para ajudá-lo?
—Primeiramente descobrir se ele quer mesmo ajuda... Ás vezes, um sapo se aprisiona no inconfessável prazer de se expôr como vítima e ser alvo de lamentações e de apoios estéreis. Faz um bem danado, ouvir alguém comentar: "Coitado! Está afundando na sua própria areia movediça! E era um sapo tão bom, não merecia, coitadinho"...
—Nossa, Rospo!
—Sei que é duro, Sapabela, mas é assim mesmo. Agora, se o sapo quiser mesmo ajuda, se manifestar  essa vontade, devemos ajudá-lo sim,.
—De que forma?
—Oferecendo a primeira flor, ainda em semente...
—O que poderia ser essa primeira semente?
—Uma conversa clara, de manhã clarice, de transparência de vidro azulado...
—Uma conversa, Rospo? Um sapo que está afundando em si, precisa de conversa? A conversa poderia desencadear uma polinização da alma?
—Sim, uma conversa aqui, um livro ali, uma canção que ele precisa ouvir, e assim, de semente em semente, ele vai se abrindo para o jardim...O jardim requer abertura da alma, requer, sem equívocos, o florescimento, o desabrochar...
—Rospo, chegamos à Padaria Rubi. Vamos ao nosso chocolate espumado com menta?
—Sapabela, meu coração é uma hélice...
—Um girassol , meu nego.
—Yupiiii! Yupiiii! Yupiiii!
—Não estranhem, por favor, agora ele não para mais.

HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 836

Marciano Vasques


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