sábado, 3 de novembro de 2012

O PORTO E A ARTE

—Como vai, meu bem?
—Rospo! Que saudades! Agora o sábado cresceu... Nada mais enevoado. Por onde andou? Como vai?
—Sapabela, vamos até a Rubi? Só para olfatar o aroma do pão. A alvorada ficará aromatizada com a poesia...

—Poesia e pão, às vezes, Poesia e flores...
—Lágrimas nos olhos, doçura, colisões de anseios, namorados nas praças... Beijos roubados em quintais ausentes,  a lisura dos seixos, a valsa das folhas no vento rei, tórax avulsos...
—Rospo, você me traz a poesia como se ela tivesse sido bordada na transparência de vidro desta manhã.
—E não?
—Quisera a vida fosse só Poesia...
—Tudo há de ser, querida. Mas a vida, essa força primaveril, esse afã universal, é a fortaleza das artes...
—Prossiga, meu nego.
—Aderiu? Lindo! Nada mais "brejeiro", na mais pura elegância da alma de nosso povo do que esse carinho... Essa singela ternura, essa cabocla lusitana cortesia entre os povos. Lembro-me que um dia, nos dias clandestinos, lá estava alguém a dizer ao seu amor ferido, "Força, meu nego, sempre estarei com você!".
—Que é isso nos olhos, Rospo?
—Maresia, meu bem. Vamos? Chegamos ao nosso porto.
—Porto? É a Rubi!, a nossa padaria.
—Nosso seguro cais, nosso porto.O porto é edificado por cada um dos que se deixam seduzir pelo marulho, pela insondável energia da maresia mansa ao entardecer, o porto, é mais que as docas, é mais que o cais, é mais que barcos atracados, e gaivotas raiando, o porto é a existência primordial no interior do Ser que clama imprescindíveis aconchegos.
—Meu porto, onde estará?
—Em você, meu bem. É só abraçar com gana a força dos vendavais, das iras, das sinas, dos quebrantos, dos sorrisos, vozes ralhando, segredando carícias, corpos suados, graxa, carvão, trilhos, aço, canaviais...a força insaciável da Poesia, aquela que por ter brotado um dia na alma alhures, recusa-se a morrer, pois tal existência não mais se dissipa do sapo nem da sapa...
—Rospo, já aromatizei a minha alma com o pão da poesia, e agora, me dá um feixe de calafrio aqui dentro...
—Diga, minha amiga.
—O de anis.
— Yupiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
—Rospo, você estava indo tão bem! Precisava fazer esse escarcéu?
—Sapabela, as coisas, que são meros detalhes,  miniaturas, grãos, de um viver, representam a grandeza de almas que se buscam... Essa ciranda imperceptível na bobagem do labirinto do cotidiano, nas asperezas, essa ciranda, brilhante, nada mais é do que isso mesmo, a grande busca...
—E por que falou isso, meu "Yupiiii!"?
—Porque só as almas que se buscam, que se aventuram nessa busca infinita, é que as queremos, e as tomamos para nós, cada um delas.
—Vou precisar de mais de um licor de anis para entender isso.
—Nós a tomamos sim, para nós, elas são incorporadas, e isso acontece através das artes, da Poesia, da Música, dos romances, das pinturas, de todas as artes. A arte é, sim, a cortesia do que não pode ser explicado, é a maneira que o sapo encontrou para registrar as suas dores, seus amores, suas paixões, e, na miniatura das rotinas, nos descasos caseiros,  sim, nas fendas, nas frestas, registrar com fúria e leveza as suas andanças pela invisível esteira do tempo.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2012 — 837

Marciano Vasques

Um comentário:

  1. Olá, Marciano,

    De blog em blog vim pingar nesse história de aromas. Muito belo. Poético.

    Abraço do Pedra

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