domingo, 5 de maio de 2013

FALAR E ESCREVER

—O que não se falou, faliu.
—Nem bem é assim, querido amigo. Ás vezes o que se fala é falácia. Nem sempre a fala é fálica, às vezes é frágil, e às vezes se oculta, como nas noites clandestinas nos países onde vigoram ditaduras, quando então se desfaz o "mito" proverbial de que "quem cala consente".
—Sapabela, você vai fundo!

—Você vai mais ainda, Rospo.
—Olha...
—Mas, prossiga. Fale sobre a fala. Deguste-a. Sonorize a dona do alcance infinito.
—O que estava querendo dizer é que às vezes o que não se falou, de tanto silêncio se gastou, e fica aquele gosto de falência, um dissolver-se, um "partiu"... Algo que era tão precioso se torna seco, e essa secura não tem remédio, nem amargo como boldo, ou losna, é algo que a vida não suporta. Pois ela, a vida, é feita de palavras, de vozes, de dizer. A vida se expressa no dizer, e a semântica da palavra é ampla. Não é tecida apenas de verbos, mas também das feridas sem cicatrização, que são resolvidas na expressão de um olhar, às vezes.
—Sim? Você sabe, Rospo, hoje é domingo. Estou gotejando de licor de anis na alma.
—Poderíamos...
—Sim!
—Ei!
—Aceito!
—Você me deixa tonto.
—Vou adorar no cinema.
—Do que está falando?
—Lone Ranger!
—Sapabela, não me confunda! Está bem animada.
—A extraordinária sintonia da energia universal nos credencia para a felicidade, Rospo. O domingo do calendário é apenas uma invenção anfíbia.
—Humana, você quis dizer. Eu sou um sapo que viveria sem tempo.
—Você não tem tempo pra nada, Rospo!
—Eu estou a dizer que viveria de acordo com o tempo, isto é, fora do tempo. O sapo sem tempo.
—Sei, e nem tivemos o licor de anis. Vamos, que a padaria Rubi nos espera.
—Gostei da fala sobre a fala. Entendo que a fala é irmã da escrita. E o que se escreve, se valer a pena, deve ser publicado, que significa: deve ser tornado público, deve ser regalado, oferecido, ao público. Engavetamento é silêncio, é aspereza do nada, é tristeza empoeirada. Caiação da alma desassossegada choramingando perdas e ausências, sentimento de não ida, de não cirandar, de não estar, de não dizer.
O que se escreve deve ser cultivado, vicejado, num esmero de puro amor.
—Rospo, quero falar o mais que puder, aliás, quando era uma menina, era a sapinha mais tagarela da família. Uma perguntadeira sem tamanho, a minha voz percorria o corredor da casa e agigantava-se nas perguntas. Fui feliz por ter convivido com adultos atenciosos.
—E eu quero escrever cada vez mais.
—Sm engavetamento, Rospo!
—Certo, amiga! Quem escreve não escraviza a sua vida. Ao contrário, flutua nas frestas, nas fendas que fecunda no cotidiano.
—Rospo, nosso portão está bom, mas vou entrar rápido para pôr um vestido, tipo aqueles de lápis do cor.Um minuto que já retorno.
—Trouxe um livro pra ler, amiga. Fique em paz.
—Engraçadinho! É um minuto mesmo!
—Se for mais, eu espero. Você sabe, sempre vale a pena.
—Cavalheiro! Meu bom amigo.
—Yupiiii!
—Sem escarcéu, Rospo! Quer acordar a vizinhança?
—Estão vendo a televisão.
—Pois é, não os acorde.
—Yupiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
—Que sapo teimoso!
—Entra logo, Sapabela! Já estou ansioso pelo vestido.
—Mas é um grande companheiro.

ROSPO 2013    — Marciano Vasques
Arte: D.V
Rospo 869

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