domingo, 17 de abril de 2011

SAPABELA AOS SETENTA

— Rospo, um dia você terá setenta anos...
— Naturalmente que sim, Sapabela. Isto é, se não me juntar às folhas de Outono antes...
— Como se sente diante dessa perspectiva?
— Quando eu era um sapo adolescente sonhava em ter maioridade para entrar no cinema e assistir aos filmes proibidos para menores... A primeira vez que atingi fiquei assustado com a força do jato... Eu tinha uns doze anos...
— Não pode falar essas coisas aqui, Rospo!
— Depois, aos vinte e cinco anos, imaginava que não chegaria aos quarenta...
— Mas agora você já passou dos quarenta.
— Mas eu pensava que ficaria de quarentena... E agora cá me vejo todo feliz, tenho olhos para as quaresmeiras, para os sabugueiros...
— Como são lindas e soberanas as quaresmeiras! As roxas quaresmeiras são tão delicadas e ao mesmo tempo tão imponentes...
— E hoje tenho olhos para as azaléias, para as hortências azuis, e para as miosótis...
— E seu olhar está mais apurado, não é?
— Sim, muito mais. Quando os olhos se enfraquecem fisiologicamente eles se aprumam, se fortalecem e se renovam na alma...
— E os setenta anos?
— Eu só teria uma preocupação...
— Qual?
— Chegar desamparado aos setenta, e então me atolar e me afundar na tal infinita dor de si mesmo...
— Como se chega desamparado?
— Pelo descaso com as coisas que são essenciais...
—  Que coisas, Rospo?
— As simples, como o apego pelo sorriso de uma criança, como o vento riscando a serenidade de um rosto, como uma folha lisa alisando o ar, como os olhos brilhantes de um cãozinho, como...
— Entendi, é jamais se deixar entediar...
— Isso, Sapabela! A aventura de viver é a coisa mais cíclica que existe...
Ela surge e ressurge e renasce...
— Em que ano, em que idade ela é mais intensa?
— Ela pode ser intensa a vida inteira. Aos nove anos, aos dezoito anos, aos quarenta, aos setenta... Se você não a perde nas infinitas possibilidades em que ela surge, você jamais chegará desamparada aos setenta...
— Rospo, vou cuidar disso, afinal também chegarei aos setenta...
— Espero estar aqui para vê-la...
— Ora, Rospo, tanto faz aqui como numa estrela... Sei que estará me piscando e me sorrindo... E seu sorriso fará eu andar em sintonia com a amizade do vento... e nos meus passos lentos, serei a que sente a infinita alegria de si mesma.


HISTÓRIAS DO ROSPO 2011 - 529
Marciano Vasques
Leia em CIANO

Um comentário:

  1. Querido Rospo vc sempre me emociona,certamente não chegará desamparado aos setenta..não só seus olhos se aprofundaram como todos seus sentidos e especialmente seu coração..
    Muita Luz neste dia..
    Ana

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